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Revista TecnoAlimentar

Opinião: Diminui o conhecimento, aumentam os riscos

Neste número 37 da TecnoAlimentar o destaque recai no pescado. É para nós, portugueses, um tema sempre muito importante, ou não fosse Portugal um país voltado para o mar: as zonas marítimas nacionais, que no seu conjunto constituem o mar português, têm os seus limites estabelecidos na Lei nº 34/2006, de 28 de Julho. Portugal, com mais de 4 milhões de km2 de zonas marítimas, é o maior estado costeiro da UE e também um dos maiores à escala mundial [1]. Trata-se de uma área enorme e de incomensurável potencial.

Embora as zonas marítimas nacionais tenham aumentado nos últimos anos, as capturas de pescado vão diminuindo, e pode dizer-se que, em números muito redondos, nos últimos cinquenta anos, as capturas baixaram de 300 mil toneladas, para cerca de 100 mil toneladas [2]. Ao mesmo tempo, a produção em aquicultura deve já ter atingido as 20 mil toneladas [3]. Tal como acontece em todo o Mundo, também em Portugal o pescado capturado no mar vai sendo substituído pelo “pescado produzido em aquicultura” [4]. Isto significa que as espécies aquáticas, que nos habituamos a referir genericamente como “pescado”, tais como peixe, moluscos, crustáceos, etc., se manterão como uma das fontes de proteína essenciais para a população humana, independentemente da sua origem.

Como alimento, o pescado coloca problemas complicados: o pescado selvagem tem associados problemas actualmente graves relativos à contaminação química e biológica das águas, e os produtos da aquicultura têm associados problemas relativos ao confinamento de grandes quantidades de animais em espaços muito reduzidos, onde a transmissão de doenças é muito rápida, obrigando ao uso de químicos/fármacos para prevenção e/ou tratamento. Estes problemas são tanto mais importantes, quanto é sabido que se trata de produtos muito perecíveis devido à sua constituição muscular mais frágil. Uma vez capturados, entram rapidamente em decomposição, sendo necessário “acudir ao pescado” com a máxima rapidez (como se dizia, com propriedade, nas fábricas conserveiras).

Durante muitos anos a ciência alimentar estudou a química, a bioquímica, a biologia e a microbiologia, dos alimentos, tão necessárias para compreender a composição dos alimentos, mas também os processos que conduzem à sua degeneração. A engenharia alimentar desenvolveu os equipamentos necessários ao processamento industrial dos alimentos e a tecnologia alimentar estudou os processos necessários à preparação e, essencialmente, à conservação dos alimentos. Trata-se de áreas fundamentais, pois o tipo de vida actual obriga a que os alimentos estejam convenientemente conservados desde os locais de produção até chegarem às mesas dos consumidores, sob pena de se incorrer em graves problemas de saúde pública. O estudo dos produtos e de novos produtos é complexo e necessita do domínio de muitas valências. Vejam-se, por exemplo, os resultados do projecto INOVEMAR [acessíveis aqui] desenvolvido no Instituto Politécnico de Viana do Castelo.

Nem a propósito, aconteceu em França! País conhecido por possuir uma indústria alimentar muito desenvolvida. País conhecido por possuir uma gastronomia diversificada e requintada. País conhecido pela sua preocupação com a saúde pública e ser impulsionador de legislação e normalização para a área alimentar. Aconteceu em França que várias pessoas (pelo menos 15) foram ao restaurante e terminaram a soirée no hospital. Outras levaram para casa, e foram para o hospital mais tarde. E, infelizmente, um dos clientes faleceu! E tudo isto porquê? Porque o cozinheiro resolveu produzir conservas de sardinha!

Este triste episódio mostra a necessidade de se saber certas coisas antes de meter mãos à obra. O problema do cozinheiro em França não foi “não saber”, mas sim de “pensar que sabia fazer”. Para fazer uma conserva de peixe é necessário saber o que é uma esterilização, de perceber que os restaurantes não têm equipamentos para esterilizar, de conhecer o que é uma embalagem hermética, o que é o Clostridium botulinum e o botulismo. E de saber que os restaurantes não podem produzir para conservar, mas apenas para consumir de imediato! Se o cozinheiro soubesse tudo isto era possivelmente um engenheiro alimentar, e os clientes do restaurante não tinham contraído botulismo. Entenda-se que a gravidade da situação é de tal modo grande, que é de relato obrigatório às autoridades competentes e analisado pela organização mundial de saúde [5]!

Vivemos numa época em que as vocações para a ciência alimentar são poucas, e em que as áreas relacionadas com a gastronomia e/ou o nutricionismo se tornaram muito apelativas, mas que não conferem os conhecimentos globais e integrados necessárias à produção de alimentos seguros. O gosto pelo estudo e pelo conhecimento, que requer esforço individual, vai sendo substituído por uma noção errada de conhecimento que facilmente se obtém na “internet”. Muitas técnicas alimentares usadas na indústria começaram a vulgarizar-se na restauração e algumas caíram na moda (por exemplo, a divulgação de técnicas industriais na chamada cozinha molecular). Actualmente, a indústria necessita de técnicos competentes e eles não abundam, e a indústria também tem a sua culpa, pois algumas vezes não tem por hábito remunerar o conhecimento! Vivemos, por isso, uma época perigosa.

Eu, por mim, vou continuar a frequentar os restaurantes tradicionais.

[1] https://www.psoem.pt/

[2] https://www.pordata.pt/db/

[3] https://rea.apambiente.pt/

[4] http://www.tecnoalimentar.pt/noticias/aquicultura-em-portugal-um-setor-em-crescimento/

[5] https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2023-DON489

Manuel Rui Azevedo Alves 
Diretor, Professor Coordendor
Grupo de Engenharia Alimentar
Instituto Politécnico de Viana do Castelo