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Revista TecnoAlimentar

Opinião: Como se chega ao desperdício...

Por: Manuel Rui Azevedo Alves

Diretor, Professor Coordenador

Grupo de Engenharia Alimentar

Instituto Politécnico de Viana do Castelo

Recordo-me de um exemplo exposto num livro pelo qual estudei, nos finais da longínqua década de 70 (!), para a unidade curricular "ecologia geral". Não me recordo do título exacto do livro, nem sequer do seu autor, mas recordo-me bem do exemplo. O autor pedia aos leitores que imaginassem uma campânula, dentro da qual estava uma mosca – Musca domestica – e um bife. A mosca, como é típico desta espécie, desovou cerca de quatrocentos ovos, que deram origem a outras tantas larvas. As larvas foram crescendo, alimentando-se do bife, e depois, quando já não restava mais bife, comeram-se umas às outras. No final, restou apenas o cadáver da última larva, a mais forte, que morreu à fome! Terminado o exemplo, o autor pedia aos leitores que imaginassem que o bife era a Terra, e que as larvas da Musca domestica eram os humanos. E explicava, com detalhe, que o crescimento da população mundial não era compaginável com os recursos existentes.

No fim da década de 70, quando estudei por esse livro, havia cerca de quatro mil milhões (4 000 000 000) de pessoas no Mundo. Passados perto de cinquenta anos, a população duplicou, para os cerca de 8 000 000 000 actuais.

Hoje, a cada quatro segundos, morre uma pessoa de fome ou causas relacionadas, e a cada dez segundos morre uma criança. Hoje, uma em cada nove pessoas vai deitar-se com fome. É isso mesmo: hoje, perto de 900 000 000 de pessoas vão deitar-se com fome. Muitos números poderiam ser escritos aqui, mas qualquer leitor interessado pode obter projecções ao instante, por exemplo, em https://www.theworldcounts.com/challenges/people-and-poverty/hunger-and-obesity/how-many-people-die-from-hunger-each-year.

É claro que o aumento da população induz a perda de solos aráveis, o aumento da temperatura do planeta e as previsíveis subidas no nível da água do mar terão o mesmo efeito, porém talvez mais nefasto. As pessoas fogem das guerras, abandonando solos aráveis e actividades agrícolas. As grandes redes logísticas e comerciais apoderam-se dos lucros dos bens alimentares, deixando pouco que entusiasme aqueles que se dedicam às actividades agrícolas, e as alterações climáticas extremas também não vão ajudar. Enfim, o panorama não é agradável. Será necessário produzir mais.

Estes aspectos são duas faces de um dos pontos fundamentais na ordem do dia para aqueles que têm preocupações genuínas com as questões da alimentação e o bem-estar das populações. As possíveis soluções para os problemas das perdas e dos desperdícios alimentares necessitam de uma mudança na forma como o desenvolvimento é encarado. Possivelmente, os indicadores económicos e os índices de desenvolvimento, que norteiam grandes tomadas de decisão, que são os mesmos de há 50 anos atrás, já não estão adequados à realidade actual.

Continua a falar-se do crescimento económico como uma necessidade e um valor absoluto. Será que o crescimento económico é uma fatalidade? Quanto desse crescimento consome muito mais do que aquilo que a Terra tem para nos dar? Por falar em desenvolvimento económico: noticiava o Jornal de Negócios em 24/4/2023, que «o mercado de telemóveis em Portugal, no ano de 2022, encolheu 3,9%, para 2 500 000 unidades, num valor global de € 934 000 000». Raciocinando sobre estes valores, se se recuperar um bocadinho durante este ano de 2023, o valor do mercado de telemóveis ultrapassará os mil milhões de euros, fazendo notar que, se em 2022 encolheu, em 2021 já tinha sido superior a essa cifra fantástica – a esse número redondo – dos mil milhões (1 000 000 000) de euros! Lembremo-nos que Portugal é insuficiente na produção de bens alimentares. É necessário importar muito daquilo que necessitamos para alimentar a nossa população.

Precisa-se, por isso, de uma política agrícola que vise o aumento da produção de alimentos. Precisa-se de uma política industrial que contribua para a redução das perdas e aumento da disponibilidade. E precisa-se de uma política que vise a redução dos desperdícios. Isto é, precisa-se de uma visão séria e integrada para a área alimentar. E, claro, convém não esquecer a água…

Por opção do autor, este texto não está escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.