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Revista TecnoAlimentar

Salsicharia tradicional portuguesa: Melhorar a segurança, manter a qualidade

A necessidade de conservar a carne terá estado na origem da salsicharia. Actualmente, a realidade é bem diferente e os enchidos são consumidos, principalmente, não pelo seu valor nutritivo, mas pelas suas propriedades organolépticas, contexto no qual o consumidor, cada vez mais exigente, procura enchidos com elevada qualidade sensorial.

Salsicharia tradicional portuguesa

Por: Marta Laranjo1 e Miguel Elias2

A salsicharia mediterrânica fabrica essencialmente enchidos secos fermentados, com baixa actividade da água (aw) (<0,90), submetidos a um longo período de maturação, a uma acidificação lenta (pH final de 5,2-5,8), e onde o nitrito não é usualmente empregue. O tipo de enchidos depende do seu diâmetro, forma, tamanho, ingredientes adicionados, características da carne e região geográfica de onde provêm.

No Alentejo, a superior qualidade destes produtos é conseguida com a utilização da carne do porco Alentejano. No Norte do país, a carne do porco Bísaro é utilizada no fabrico de diversos produtos cárneos, sendo que esta raça fornece mais carne que a do porco Alentejano, que apresenta grande quantidade de gordura.

Em Portugal, os consumidores são cada vez mais exigentes e preferem produtos artesanais. O reconhecimento da especificidade destes produtos, por parte das entidades nacionais e comunitárias, traduz-se na protecção jurídica de que alguns deles beneficiam, designadamente através de Denominações de Origem Protegidas (DOP) e Indicações Geográficas Protegidas (IGP).

Estas medidas de protecção, entre outras vantagens, têm o mérito de fomentar o respeito por uma tradição de fabrico que se reconheceu como particular e que se pretende continuada através dos tempos. No caso dos produtos do porco Alentejano, existem protecções (DOP e IGP) para alguns dos que são fabricados nas regiões de Estremoz e Borba (enchidos), Portalegre (enchidos), Santana da Serra (presuntos), Campo Maior e Elvas (presuntos) e Barrancos (presuntos e enchidos), entre outros.

Tecnologia da produção de enchidos - Etapas do processo

O fabrico de enchidos tradicionais conjuga várias operações cujo objectivo último é o aproveitamento tão completo quanto possível da carne, vísceras, gorduras e sangue do porco e a sua conservação para usos diversificados. No que respeita à tecnologia da produção de enchidos, podemos considerar seis fases: selecção das matérias-primas, miga, preparação da massa, maturação da massa, enchimento e cura (secagem, fumagem e maturação).

Selecção das matérias-primas

Nos enchidos podem ser utilizadas carnes de porco (de longe as mais usadas), bovino, cavalo, entre outras, de acordo com os hábitos de consumo e gostos e costumes de cada região. A escolha criteriosa da carne e das gorduras destinadas ao fabrico de cada tipo de enchido é fundamental para que se obtenha um produto final com composição e características desejáveis. Quando se utilizam peças demasiado gordas incorre-se em riscos tecnológicos como o baixo poder de retenção de água, a reduzida firmeza, ou a difícil ligação das massas.

Quando se utilizam peças excessivamente magras poderá ocorrer uma rápida secagem do produto, com quebras de peso exageradas, sendo prejudicadas também a aparência, textura e sapidez do enchido.

Miga

A miga tem por finalidade reduzir a matéria-prima (carne e toucinho) a pequenos fragmentos com dimensões adequadas a cada tipo de enchido. Deste modo, há produtos constituídos por um só fragmento, caso do paio de lombo, fragmentos de dimensões variáveis, como é o caso da maioria dos enchidos, chouriços, linguiças, paios, palaios, entre outros, e ainda os de fragmentos tão diminutos que formam pastas, como é caso de alguns salames.

O grau de redução de tamanho está directamente relacionado com a eliminação de água, que será mais lenta nos fragmentos de maior dimensão, e estes, em termos gerais, estarão associados a períodos de cura mais prolongados. A miga deve ser realizada a baixas temperaturas, entre -5°C e 0°C, para que o corte seja preciso e sem que se liberte gordura intramuscular, nas carnes gordas, como é o caso das do porco Alentejano. Tal situação originaria alterações na cor dos enchidos durante a cura.

Preparação da massa

Às carnes migadas são adicionados os restantes ingredientes do enchido do que resulta uma mistura denominada massa. O conjunto dos ingredientes adicionados às matériasprimas (carne e toucinho) é muito variável, de acordo com o tipo de enchido. Podemos agrupá-los em água, nalgumas zonas do país vinho (como condicionante do aroma e do sabor de alguns enchidos regionais), condimentos e aditivos.

O sal é, seguramente, o ingrediente mais antigo que se conhece, desempenhando inúmeras funções nas massas destinadas à produção de enchidos. É principalmente um agente promotor do sabor e depressor do aw, funcionando como bacteriostático.

As especiarias são produtos de origem vegetal, que se adicionam aos alimentos de modo a conferir-lhes sabor e aroma particulares. O aumento da capacidade de conservação dos produtos cárneos devido ao emprego de especiarias está relacionado com as suas actividades antimicrobiana e antioxidante sobre as gorduras. S

ão várias as especiarias utilizadas no fabrico de enchidos, contudo, as mais frequentemente usadas, pelas suas características sápidas e aromáticas, são o alho (Allium sativum), com marcada actividade antimicrobiana, aplicado na forma de massa de alho, e o pimento (Capsicum annuum L.), sob a forma de massa de pimentão, ou de pimentão desidratado (colorau).

Outras especiarias usadas são a cebola, a salsa, o louro, a pimenta, o cravinho, os cominhos, a noz-moscada, o tomilho, a manjerona, o orégão, a mostarda, entre outros. Algumas destas especiarias são aplicadas em quantidades muito pequenas devido à forte acção aromática.

Nos enchidos tradicionais os aditivos mais utilizados são os conservantes, nitritos e nitratos, que também têm acção positiva na estabilização da cor, alguns antioxidantes e alguns gelificantes, para aumentarem a retenção de água nos produtos.

Maturação das massas de carne

A maturação é um fenómeno resultante da acção desenvolvida pelo sal, água e microrganismos, favorecendo-se a interacção dos diferentes ingredientes. Esta fase do processo é caracterizada, essencialmente, pela entrada de sal nos fragmentos da carne e concomitante extracção de água e proteínas, e pelo desenvolvimento microbiano, de que resulta a libertação de produtos do seu metabolismo.

As proteínas extraídas tornam viscosas as superfícies dos fragmentos de carne e desempenham um papel determinante na ligação das massas. Os parâmetros ambientais indicados para que estes fenómenos ocorram de forma adequada são valores de temperatura entre 0 e 10°C e de humidade relativa entre 90% e 95%.

A duração desta etapa, dependendo do calibre dos enchidos e do grau de redução de tamanho a que foram submetidas as carnes, varia entre as 24 e as 48 horas, nos processos mais industrializados, e entre os dois e os quatro dias, nos processos artesanais.

Enchimento

O enchimento é a operação que consiste em introduzir a massa, repousada e maturada, num invólucro adequado. O invólucro proporciona à massa coesão, forma e dimensões, protegendo-a de algumas influências externas prejudiciais, designadamente contaminações microbianas, não podendo constituir ela própria uma fonte de contaminação, microbiana ou química.

Na produção de enchidos artesanais são utilizados vários tipos de invólucros naturais, nomeadamente as tripas, a pele das banhas, o bucho e as bexigas. No entanto, em processos mais industrializados são utilizadas também tripas artificiais e tripas sintéticas, sendo as mais utilizadas as de colagénio reconstituído, com características semelhantes às naturais. As tripas naturais contribuem para a melhor aparência dos enchidos e são usadas, sobretudo, em produtos de alta qualidade.

De um modo geral, a utilização de tripas naturais carece de mais mão-de-obra que as artificiais. As tripas naturais são perecíveis, pelo que geralmente são conservadas em sal, a temperaturas não superiores a 25°C. As propriedades fundamentais atribuídas às tripas utilizadas no fabrico de enchidos são a sua elasticidade e a sua permeabilidade ao vapor de água e ao fumo.

A elasticidade é decisiva para que a retracção da tripa acompanhe a redução de tamanho do enchido resultante da sua desidratação. A permeabilidade da tripa regula a desidratação necessária à estabilização do enchido, não podendo esta permeabilidade ser baixa ao ponto de impedir a adequada desidratação, nem alta ao ponto de promover uma secagem excessiva.

Após o enchimento as tripas são imediatamente atadas nas extremidades para que não haja diminuição da pressão de enchimento e, de seguida, picadas com agulhas, para facilitar a saída dos exsudados. 

Cura

A carne depois de migada, temperada, amassada e maturada, transformase mediante o processo de cura numa substância alimentar com características organolépticas, físicas e químicas muito particulares e próprias de cada tipo de enchido. Até há pouco, o resultado final dependia, em grande medida, do acaso, dos microrganismos que se instalavam na massa e das condições climáticas no momento da produção dos enchidos. Actualmente, todos estes processos são controlados com maior rigor.

A fumagem consiste na exposição dos enchidos à acção do fumo resultante da combustão de determinadas madeiras enchedora . 24 tecnoalimentar n.º2 não resinosas. No sul e centro de Portugal o azinho é indiscutivelmente a madeira mais utilizada. Contudo no norte do país, para além do azinho, há também a utilização de outras madeiras, como a faia e a oliveira. Após a saída do fumeiro, os enchidos completam o processo de cura em câmaras à temperatura de 10-15°C, humidade relativa de 75-80% e ao abrigo da luz.

Nos nossos dias, os objectivos que se pretendem atingir com a fumagem das carnes transformadas traduzem-se na modificação do aroma, sabor e cor dos produtos fumados, na sua acção antioxidante sobre as gorduras, no efeito conservante resultante da sua acção antimicrobiana, e na sua intervenção sobre a textura dos produtos.

Continua

Nota: Artigo publicado originalmente na Tecnoalimentar 2.

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1 ICAAM - Instituto de Ciências  Agrárias e Ambientais Mediterrânicas, Instituto de Investigação e Formação Avançada (IIFA), Universidade de Évora

2 Departamento de Fitotecnia, Escola de Ciências e Tecnologia, Universidade de Évora