Utilização da hiperpressão na conservação de recheios de chocolate
António Panda1, Patricia Lage2, Célia Lampreia2, Teresa Santos2, Jorge A. Saraiva3, Bartolomeu Alvarenga4,5, Carlos A. Pinto3, Renata A. Amaral3, João Dias2,5
1 Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa (FCT – ULisboa)
2 Escola Superior Agrária de Beja, Instituto Politécnico de Beja (ESA – IPBeja)
3 Departamento de Química, Universidade de Aveiro (LAQV-REQUIMTE – UA)
4 Unidade da Tecnologia e Inovação, Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (UTI – INIAV)
5 Departamento de Geociências, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa (GeoBioTec – FCT – ULisboa)
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo a avaliação do efeito da tecnologia de alta pressão em recheios de chocolate. Os recheios foram produzidos através da mistura de chocolate negro (73,5% cacau) e natas à temperatura de 90 ºC, seguido de agitação. Seguidamente, as amostras foram separadas em diferentes lotes, embaladas a vácuo, termoseladas e sujeitas a diferentes pressões (400 MPa ou 600 MPa) e diferentes tempos (10 minutos ou 20 minutos). Posteriormente foram armazenadas a 20 ºC até um período de 12 meses. Durante este período, procedeu-se à monitorização de parâmetros físico-químicos e microbiológicos. Verificou-se que o lote sujeito a 600 MPa durante 20 minutos apresentou a menor carga microbiana no final do tempo de armazenamento, sendo o único com valores aceitáveis após o tempo de conservação, de acordo com as recomendações em vigor. Não foram observadas variações significativas nos parâmetros físico-químicos durante o armazenamento nos diferentes lotes testados.
Palavras-chave: Alta pressão, Reologia, Microbiologia, Chocolate, Armazenamento.
INTRODUÇÃO
Desde o século XIX que são feitas referências à utilização da alta pressão (HPP, do inglês High Pressure Processing) como método de conservação de alimentos. O americano Bert Hite, em 1899, demonstrou que a aplicação de pressões na ordem dos 600 MPa em leite, durante uma hora e à temperatura ambiente, permitia prolongar o seu tempo de vida útil devido à redução e inativação de microrganismos. No início do século XX volta a surgir o interesse pela utilização das altas pressões, sobretudo devido à sua grande potencialidade para a indústria. No entanto, apenas em meados da década de oitenta do século XX foram intensificados os estudos relacionados com o processo de alta pressão aplicado a alimentos, nomeadamente em 1982, na Universidade de Delaware, nos Estados Unidos da América, e em 1986, na Universidade de Kyoto, no Japão. Daqui resulta a formação de uma sociedade japonesa de alta pressão e, em 1990, o lançamento para o mercado dos primeiros alimentos pressurizados (sumos e compotas), pela companhia japonesa Meidi-Ya Food Factory Co. (Téllez-Luis et al., 2001). Atualmente existem empresas no Canadá, França, Japão, Espanha e Estados Unidos da América que têm recorrido à utilização da alta pressão como forma de pasteurização de diversos produtos comerciais, como guacamole, salsa, sumos, produtos cárneos, cidra, geleias, ostras, entre outros (Lau e Turek, 2007). Também em Portugal já é utilizada esta tecnologia na estabilização de sumos e polpas de frutos.
Os princípios básicos que determinam o comportamento dos alimentos sob pressão são: i) princípio de Le Chatelier, princípio da ordem microscópica e ii) princípio isostático (Barba et al., 2015; Rivalain et al., 2010; Yordanov e Angelova, 2010). A aplicação da alta pressão baseia-se na aplicação contínua de elevadas pressões (100-600 MPa), durante vários minutos (Herrero e Avila, 2006). O processo é isostático, uma vez que a pressão é transmitida uniformemente e instantaneamente, e adiabático, existindo pouca variação da temperatura com o aumento da pressão (a temperatura acresce cerca e 3 ºC por cada 100 MPa, consoante a composição do alimento e do fluido de pressurização), pelo que o tamanho e a forma dos alimentos não são determinantes (Rendueles et al., 2011). A inativação de microrganismos por alta pressão é o resultado de uma combinação de fatores, incluindo o aumento da permeabilidade das membranas celulares devido à cristalização dos fosfolípidos, à desnaturação de proteínas e redução da atividade enzimática, o que pode levar a perdas das funções celulares. As enzimas ficam suscetíveis, sendo a sua inativação fruto das alterações das estruturas intermoleculares e da conformação do centro ativo, o que é afetado por fatores como o pH, concentração do substrato, estrutura das subunidades da enzima e temperatura (Patterson, 1999).
As condições de desnaturação variam consoante as enzimas (Farr, 1990). Apesar da hélice de ADN permanecer estável, pelo facto de as pontes de hidrogénio serem favorecidas pela pressão (Cheftel, 1995), os mecanismos genéticos como a transcrição e tradução de ADN são inibidos, uma vez que as enzimas são mediadoras de algumas etapas. Deste modo, a replicação e tradução podem ser interrompidas pela pressão (Aymerich et al., 2008). A taxa e a cinética de inativação dos microrganismos dependem de uma serie de parâmetros como: combinação pressão-tempo-temperatura; tipo de microrganismo; característica das estirpes (Gram-positivas são mais resistentes que Gram-negativas); morfologia da célula bacteriana; fase de crescimento dos microrganismos (na fase exponencial são mais suscetíveis que na fase estacionária); composição dos alimentos (nutrientes, pH, atividade da água) (Hugas et al., 2002; Rebelo, 2014).
A HPP apresenta várias vantagens, em relação a outras formas de conservação, incluindo: i) a produção de produtos de elevada qualidade com poucas alterações ao nível sensorial, nutricional e funcional (Jofré et al., 2010; Chawla et al., 2011; Garriga et al., 2002); ii) inactivação de enzimas e microrganismos, sem provocar alterações em componentes sensíveis, como vitaminas (Sangronis et al., 1997); iii) prolongamento do período de vida útil dos produtos (Sangronis et al., 1997) sem utilização, ou com redução, de conservantes químicos (Téllez-Luis et al., 2001), ou iv) possibilidade de aplicação em alimentos sensíveis ao calor (Clariana et al., 2011). No entanto, esta tecnologia também apresenta algumas desvantagens, como: i) elevado custo do equipamento (Patterson, 2005); ii) limitação do seu uso em alimentos suscetíveis de alterar a sua forma com a pressão (Lage, 2008) ou; iii) limitação do seu uso em alguns produtos alimentares, incluindo produtos com baixo grau de acidez (alguns vegetais, leite e sopa), devido ao facto de ser incapaz de destruir grande parte dos esporos microbianos (Ramaswamy et al., 2004).
Apesar de não existir uma definição simples e universal de “tempo de prateleira”, uma definição aceite globalmente é a do Institute of Food Science and Technology, no Reino Unido, como “o período de tempo durante o qual o produto é seguro e apresenta as qualidades desejadas em termos sensoriais, químicos, físicos, microbiológicos, características funcionais e cumpre com a informação nutricional presente na rotulagem quando armazenado sob as condições recomendadas” (Robertson, 2010). No caso de recheios de chocolate, devido às inevitáveis variações físicas e químicas numa receita, o período de conservação é sempre limitado e dependente de fatores externos. Mesmo respeitando as condições de higiene e de conservação, a maioria dos bombons artesanais não mantém as características durante meses. Na maioria dos casos, a deterioração ao longo do armazenamento deve-se à presença de água, mas também devido à presença de microrganismos e exposição à temperatura ambiente. Os tipos de deterioração mais frequentes, ao longo do armazenamento, são (Dias, 2014):
• Deterioração física: É o caso da secagem, perda de aroma, separação de gorduras, dissolução e recristalização do açúcar na superfície do bombom (sugar bloom), migração de manteiga de cacau para a superfície (fat bloom), absorção de cheiros, entre outras;
• Deterioração química: A mais comum deve-se à oxidação dos ácidos gordos, sendo potenciada pela luz, vestígios de metais, temperatura elevada e presença de enzimas. É mais frequente no chocolate branco devido ao reduzido teor em fenóis. Outra alteração deste tipo deve-se à hidrólise dos ácidos gordos, ou saponificação, pelas lípases, essencialmente de origem microbiana, e à disponibilidade de água livre;
• Deterioração microbiológica: Devido ao desenvolvimento de fungos ou bactérias. O facto de serem utilizadas matérias-primas de elevado valor nutricional, como natas, leite, manteiga e polpa de fruta potencia o seu desenvolvimento, especialmente quando existe uma grande quantidade de água disponível.
O presente trabalho teve por objetivo a aplicação da HPP em recheios de chocolate a fim de prolongar o tempo de prateleira, tendo sido delineado um ensaio com 12 meses de armazenamento à temperatura ambiente, com monitorização de parâmetros físico-químicos e microbiológicos.
METODOLOGIA
Preparação das amostras
Os recheios de chocolate negro foram produzidos nas instalações da empresa Sugar Bloom/Mestre Cacau (Beja), tendo sido utilizado chocolate negro El Rey Apamate (73,5 % de cacau) e natas (33% de gordura), numa proporção de 2:1. A preparação das amostras iniciou-se com o aquecimento das natas a 90 ºC, posteriormente, adicionou-se o chocolate negro e homogeneizou-se utilizando um misturador manual de duas lâminas (Braun Multiquick 5MR500). O recheio foi depois distribuído em sacos flexíveis de polietileno (PA/PE-90, Albipack—Packaging Solutions, Águeda, Portugal), à razão de 50g por saco, sendo posteriormente embalado a vácuo e termoselado.
Nota de Redação
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