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Revista TecnoAlimentar

Carne celular, a carne do futuro?

O grande aumento populacional esperado até 2050 levanta diversas preocupações, nomeadamente, no que diz respeito à escassez de alimentos e, em particular, de proteína animal. A carne celular tem sido alvo de especial atenção e vista como uma opção para esta problemática. No entanto, apesar de se contornar o sacrifício animal e se esperar um impacto positivo para a saúde, algumas questões cruciais estão, ainda, por responder.

Carne celular

Por: Stéphanie Reis, Ana Patrícia Sousa - Investigadoras Colab4Food

Em termos técnicos, a carne celular carece de alguma pesquisa e otimização metodológica, contudo, tem vindo a suscitar o interesse da comunidade científica, de grandes investidores e dos meios de comunicação social. Este artigo pretende transmitir uma visão geral e recente sobre a carne celular, abordando prós e contras, assim como dificuldades do posicionamento no mercado.

A população mundial está a crescer rapidamente e deve ultrapassar os 9,7 milhares de milhão até 2050. A FAO prevê a necessidade de um aumento de cerca de 70% dos alimentos atualmente disponíveis (FAO, 2020). Ainda que o consumo de carne esteja a diminuir nos países desenvolvidos, estima-se que seja necessário duplicar a produção de carne. Este aumento é uma preocupação devido às limitações de recursos e de terras aráveis, que poderá levar à ineficiência da produção de proteína animal. Atualmente, outros pontos são discutidos quanto à pecuária intensiva, como questões ambientais, mudanças climáticas, bem-estar animal e sustentabilidade, bem como relativas a problemas de saúde pública.

A “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, adotada por todos os Estados-Membros da ONU, pressupõe um sistema de produção sustentável de alimentos. A Agenda assinala que os alimentos precisam de ser suficientes, seguros, acessíveis e nutritivos. Entre as soluções, a carne celular parece ser uma alternativa sustentável para os consumidores que não desejam alterar a composição da sua dieta.

Os principais trabalhos em carne celular, apesar de uma tendência atual, foram desenvolvidos no decorrer da última década. Os primeiros resultados práticos desta investigação surgiram em 2013, com Mark Post a apresentar o primeiro hambúrguer de carne de vaca produzido em laboratório (Datar, 2015). Vários esforços têm sido feitos nesta área com investimentos e criação de start-ups a impulsionarem o mercado (Cameron e Neill, 2019).

No entanto, existem, ainda, várias questões do foro regulamentar, bem como desafios do ponto de vista de rentabilidade económica, que têm dificultado o posicionamento da carne celular no mercado.

Carne celular - O conceito

A carne celular (carne in vitro, sintética, ou cultivada em laboratório, termos utilizados para expressar este conceito na literatura (Stephens et al., 2019)) pode ser definida como carne artificial obtida de células-tronco e multiplicadas com engenharia celular. O desenvolvimento de culturas celulares envolve uma série de princípios biológicos e apresenta vários desafios tecnológicos (Danoviz e Yablonka-Reuveni, 2012). A produção de carne celular pressupõe duas possíveis fontes: célula isolada de tecido original ou linhas celulares (Stephens et al., 2018).

As células miossatélites ou células-tronco do músculo, sendo a “fonte primária” para a formação do músculo, parecem ser uma boa opção como fonte de material para desenvolver carne in vitro. No entanto, as dificuldades técnicas associadas ao isolamento, cultivo e manutenção destas células têm levado à procura de soluções mais práticas por parte dos investidores (Kadim et al., 2015). A utilização de outras células-tronco, como embrionárias, está a ser testada pela BioFood Systems (BioFood Systems, n.d.)

De um modo geral, o processo de produção de carne celular, resumido na Figura 1, começa com uma pequena biópsia, de animais vivos, com a excisão de um pequeno pedaço de tecido.

Seguidamente, dá-se o passo de proliferação em escala laboratorial, onde as células miossatélites são separadas dos tecidos e cultivadas em meio líquido específico, rico em nutrientes e fatores de crescimento. O meio de crescimento a utilizar é um ponto decisivo na produção de carne in vitro (Warner, 2019). A aplicação de estímulos biomecânicos, biofísicos e elétricos também é necessária para ocorrer uma correta proliferação, diferenciação e maturação celular. As células miossatélites, após ativação, proliferam como mioblastos.

Figura 1

Depois de atingirem o nível de proliferação ideal, segue-se a diferenciação de mioblastos em miócitos. A fusão dos miócitos irá originar miotubos e, posteriormente, fibras musculares esqueléticas.

A diferenciação ocorre num biorreator, onde as células recebem meio de crescimento e são mantidas em condições ideais. A obtenção de uma estrutura 3D, com grande espessura e textura, requer um scaffold que seja capaz de permitir a adesão celular, o que permanece como um desafio da carne celular (Stephens et al., 2018).

Uma visão holística

O tema “carne celular” está em voga e, apesar de a sua produção poder promover vantagens, como éticas e de saúde, a compreensão e aceitação por parte do consumidor, está, ainda longe de acontecer. Algumas desvantagens, discutidas nesta secção, são apontadas pela comunidade científica e pelos meios de comunicação social.

A crescente adesão ao flexitarianismo, estilo de vida que privilegia a diminuição do consumo de carne e peixe para se obter os benefícios associados à dieta vegetariana, procurando uma dieta nutricionalmente mais equilibrada, com menor impacto na saúde e no ambiente, parece compactuar com soluções do tipo da carne celular, uma vez que esta não sacrifica o animal e poderá ser uma opção mais saudável e causar menor risco de segurança alimentar (Chriki e Hocquette, 2020; Fraeye et al., 2020; Santo et al., 2020).

As células miossatélites, mais usadas para produzir carne celular, não se diferenciam em células de gordura (Danoviz e Yablonka-Reuveni, 2012), o que permite aos produtores controlarem o perfil de gordura da carne desenvolvida (Dolgin, 2020).

Os produtores de carne celular podem, também, evitar compostos específicos, frequentemente associados a comorbidades (Warner, 2019). A produção em massa deste produto alimentar é feita em ambiente estéril e altamente controlado, devido ao risco de contaminação bacteriana e morte celular. Os grandes players neste mercado afirmam, ainda, que será possível desenvolver carne in vitro sem recorrer ao uso de produtos geneticamente modificados, antibióticos ou hormonas (Eelen, 2007).

No entanto, algumas questões estão, ainda, por responder, uma vez que as hormonas são fortes indutores de crescimento e os antibióticos ajudam a prevenir qualquer infeção por bactérias. Assim, será importante esclarecer se estes produtos serão ocasionalmente ou totalmente eliminados durante a cultura de células.

Apesar da produção de carne celular não carecer de sacrifício animal, a aceitação pela dieta vegana está ainda em debate (Chriki e Hocquette, 2020; Stephens et al., 2018). O meio de cultura celular mais usado utiliza soro animal (maioritariamente soro fetal bovino), o que levanta questões éticas e conjetura problemas ecológicos, económicos e sustentáveis (Warner, 2019). Uma colaboração entre o CPI technology innovation center e 3D Bio-Tissues (3DBT), um spin-out da Universidade de Newcastle, desenvolveu um novo tipo de meio de crescimento sem soro fetal bovino (Selby, 2020b).

Esses suplementos serão produzidos a partir de subprodutos existentes da agroindústria, como resíduos de madeira e palha. Esta alternativa reduzirá os custos e a pegada ambiental da produção de carne celular, promovendo a sustentabilidade e a economia circular. O impacto na agricultura e na economia, as questões de partilha de propriedade intelectual e a regulamentação, também são preocupações comuns.

O custo é, também, um dos principais entraves para a aceitação e lançamento destes produtos no mercado, estimando-se que o custo de produção esteja entre 400 $USD a 2000 $USD por quilo (Sousa, 2020).

Uma outra preocupação atual é o impacto que o desenvolvimento de carne celular poderá ter no ambiente e nas condições climáticas (Lynch e Pierrehumbert, 2019). As instalações e os equipamentos necessários, bem como o alto grau de processamento necessário nestes produtos, requerem elevados gastos energéticos e de água (Lynch e Pierrehumbert, 2019; Smetana et al., 2015).

A gestão de resíduos formados nestes laboratórios carece, também, de análise de impacto. Assim, uma avaliação cuidada do ciclo de vida destes produtos será crucial para perceber o verdadeiro impacto ambiental da carne celular.

Os aspetos nutricionais, a biodisponibilidade dos nutrientes e os aspetos sensoriais, também, são um desafio para o sucesso da carne celular. A carne é conhecida por todos nós como sendo uma boa fonte de proteína, rica em todos os aminoácidos essenciais, em vitamina B12, ferro, zinco e selénio (McAuliffe et al., 2018).

Assim, para que a carne celular substitua a carne convencional, ela precisará igualar ou aumentar a biodisponibilidade e o valor destes nutrientes, o que, de um modo geral, estará dependente dos nutrientes adicionados ao meio de crescimento utilizado durante a sua produção.

A experiência sensorial alcançada através do consumo de carne celular, limita a escolha do produto por parte do consumidor, e deve ser semelhante à obtida pelo consumo de carne convencional (Fiorentini et al., 2020; Taylor et al., 2020). Tal facto, aplica-se mesmo a outros produtos, como “carne” à base de vegetais/plantas.

Alguns investigadores apontam que a alta taxa de proliferação necessária de células-tronco poderá originar instabilidade genética e resultar em células cancerígenas esporádicas (Warner, 2019). A adição de hormonas de crescimento, nutrientes e outros químicos, como antibióticos e conservantes levantam, também, questões de segurança alimentar e, caso o seu uso não seja evitável, carecerá de investigação e precisará de ser claramente aprovado pelas autoridades internacionais de segurança alimentar (Warner, 2019).

Tendência de mercado em crescimento

Nos últimos anos, têm surgido inúmeras start-ups que visam o desenvolvimento de carne celular e o seu posicionamento no mercado (Cameron e Neill, 2019; Hanga et al., 2019). Do ponto de vista de regulamentação e aprovação para comercialização, Singapura foi o primeiro país do mundo a autorizar a venda de carne celular, com o “nugget de frango” obtido em cultura de células, da start-up Eat Just (Ferrer, 2020).

Este foi um dos marcos mais importantes na indústria alimentar, e espera-se que impulsione de forma rápida este mercado. Uma dúvida ainda inquietante, passa por perceber quando se atingirá um patamar tecnológico que permita uma produção economicamente viável, para que haja maior competitividade destes produtos no mercado. Algumas empresas líderes na investigação, Memphis Meats, CUBIQ Foods, e Mosa Meat, anunciaram que esperam começar a vender produtos em 2021, provavelmente a um preço premium e em escala limitada (Hanga et al., 2019).

A Meatable recebeu, em 2019, 9 milhões de euros para criar um protótipo de carne de porco cultivada em laboratório (Fernández, 2019). A Aleph Farms revelou em Novembro de 2020 o seu primeiro protótipo de carne celular, um “bife de carne bovina” (Selby, 2020a), e tenciona levar a produção de carne celular para o espaço (Lua e Marte) (Aleph Farms | Meat Growers, n.d.).

Conclusão

O aumento populacional esperado até 2050 poderá provocar carências nutricionais à população e a produção de alimentos poderá ser insuficiente para responder às necessidades mundiais. Entre as várias opções para novas fontes de alimentos, a carne celular tem sido alvo de grandes investimentos, canalizados para investigação de ponta, com o culminar da sua recente aprovação para consumo em Singapura.

A escolha do consumidor será o sucesso comercial desta opção alimentar. Os estudos atualmente desenvolvidos na área permitirão obter novas respostas, e determinarão o sucesso da carne celular no mercado num futuro próximo.

Bibliografia

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