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Revista TecnoAlimentar

História e processo de fabrico da cerveja

Não se sabe o momento exato da produção da primeira cerveja, mas presume-se que tenha ocorrido entre os anos 8 000 a 6 000 AC, estando relacionada com a sedentarização dos povos e o desenvolvimento da própria agricultura. A fermentação espontânea e acidental de um cereal mergulhado em água, terá estado na origem desta fantástica bebida.

Cerveja Vadia

Por: Cerveja Vadia

Ao longo dos séculos o processo de produção foi evoluindo com a própria civilização e adquiriu grande importância, nomeadamente no antigo Egito, onde servia como moeda de troca para pagamento de serviços. Durante o domínio Romano, a cerveja foi destronada pelo vinho, sendo considerada bebida de bárbaros, voltando a ser valorizada na idade média onde era produzida sobretudo nos mosteiros. Estes deram origem a algumas das cervejas de maior reputação no mundo e que ainda hoje são produzidas.

A revolução industrial com a introdução de novas tecnologias nomeadamente a máquina a vapor, o frio industrial e o progresso científico sobre leveduras e fermentações veio alterar completamente os métodos de produção da cerveja dando origem a uma verdadeira indústria moderna, com fábricas cada vez maiores. Esta modernização, a par da utilização do lúpulo, uma nova matéria-prima cujas propriedades conservantes permitiam dar longevidade à cerveja (antes apenas era possível guardar a cerveja por alguns dias), sendo possível armazenar grandes quantidades de produto e transportá-lo para distâncias cada vez maiores.

A meio da década de 1800, na cidade de Pilsen na República Checa é criada a primeira Pilsner, pelo mestre cervejeiro alemão Josef Groll. Este estilo, caracterizado pela fermentação a temperaturas baixas, está na origem da maioria das cervejas produzidas ainda hoje em todo o mundo. Juntamente com as American Lager (diferenciam da pilsner pela utilização de milho para além do malte de cevada), correspondem a perto de 80% da cerveja produzida e consumida a nível mundial.

Sucessivas fusões e aquisições, que acontecem até aos dias de hoje, levaram à concentração das empresas nacionais em grandes grupos económicos mundiais. Estes verdadeiros gigantes, tais como a AB-Inbev (proprietária de marcas como a Budweiser, Corona, Stella Artois entre outras), Heineken (Amstel, Fosters, Cruzcampo, Sol, Sagres, entre outros) ou Carlsberg (Tuborg, Kronenbourg, Grimbergen ou Super Bock) controlam a maioria da produção de cerveja em todo o mundo.

Em Portugal o processo foi em tudo idêntico. As unidades de produções regionais foram sendo concentradas em dois grupos, um a norte (Super Bock Group) e outro a sul (Sociedade Central de Cervejas) que são responsáveis pela quase totalidade da cerveja produzida no país. Como não podia deixar de ser, ambos os grupos foram integrados os gigantes mundiais, Carlsberg e Heineken respetivamente.

A Craft Revolution

Cansado do domínio das grandes cervejeiras e da falta de alternativas à clássica american lager, personificada pela Budweiser, na década de 80 surge nos Estados Unidos um movimento que deu origem á revolução artesanal. De acordo com a Brewers Assocition, em 1980 existiam nos EUA cerca de 92 cervejeiras, maioritariamente regionais. Em 2018 atingem as 7450, incluindo 4522 microcervejeiras e 2594 brewpubs (bares que produzem a sua própria cerveja).

Não sendo consensual e uniforma a definição de Cerveja Artesanal, esta caracteriza-se sobretudo pela identidade (forte ligação entre o consumidor e o produtor/cervejeiro), naturalidade e qualidade das matérias-primas utilizadas, diversidade de estilos produzidos, técnicas utilizadas e novas matérias-primas e escala (pequenas unidades de produção). Nos Estados Unidos o sucesso foi tão grande que algumas microproduções cresceram ao ponto de hoje serem tão grandes como as nossas cervejeiras industriais. Boston Beer Company, Sierra Nevada Brewing, New Belgium Brewing são disso exemplo. Estima-se que o consume de cerveja artesanal neste país ultrapasse os 15% do total.

A IPA (India Pale Ale) é provavelmente o estilo de cerveja que melhor personifica este movimento. Originária de Inglaterra no período da expansão colonial, a IPA caracteriza-se sobretudo pela utilização de bastante lúpulo. Sendo este um conservante natural, era adicionado em maior quantidade na cerveja que era enviada para a India, para que esta não se estragasse antes de lá chegar. Entretanto caída no esquecimento, a IPA foi recuperada pelos americanos, que a tornaram popular, originando novos sub-estilos sobretudo pela utilização de diferentes ingredientes e variantes de lúpulo, alguns deles desenvolvidos no país.

A Europa foi entretanto contagiada pelo movimento que se espalhou por todo o continente, incluindo os países de tradição cervejeira, que apesar de alguma resistência inicial, sucumbiram ao fenómeno. . De acordo com o Brewers of Europe, a própria Alemanha, que se caracteriza por um número elevado de cervejeiras regionais, passou de 659 microcervejeiras em 2011 para 853 em 2018. Na República Checa, no mesmo período, passou de 90 para 440 microcervejeiras. No sul da Europa, talvez pela tradição vinícola o surgimento e crescimento foi mais tardio, no entanto mais rápido. De acordo com o Brewers of Europe, a Espanha passa de 70 em 2011 para 395 em 2018.

Em Portugal, as primeiras empresas são criadas em 2010 começando a comercializar em 2011. Praxis em Coimbra, Vadia em Oliveira de Azeméis e Sovina no Porto são os primeiros projetos a surgir no mercado, chegando aos 115 em 2018. A falta de legislação específica e o desconhecimento das autoridades locais sobre esta atividade, estarão na origem das principais dificuldades e do arranque tardio dos primeiros projetos. Entretanto foi feito o devido enquadramento da produção de cerveja nas atividades artesanais. A associação Cervejeiros de Portugal, que engloba os grandes produtores industriais de Portugal e parte significativa dos produtores artesanais tem tido um papel relevante no apoio ao setor, nomeadamente no enquadramento legal e fiscal dos pequenos produtores.

A nível mundial, nota-se nos últimos anos um interesse dos grandes grupos industriais nos produtores artesanais, com o objetivo do seu fortalecimento e crescimento, garantindo alguma independência na sua gestão e estratégia. Nos EUA a Lagunitas (Heineken), no Brasil a Walls e Colorado (AB-Inbev), em Espanha a La Virgem (AB-Imbev) ou em Portugal a Nortada (Estrella Galicia) são alguns exemplos.

Como se faz uma cerveja

De acordo com a Lei da Pureza da Cerveja (Reinheitsgebot) de 1516 na Baviera, que tinha como objetivo controlar as matérias-primas por forma a taxar a produção de cerveja, esta só podia ser produzida com base em quatro ingredientes: água, malte de cereal, lúpulo e levedura. Na verdade, a cerveja é muito mais que isso.

Tendo como base estes ingredientes mas utilizados em diferentes proporções, adicionando outros como por exemplo especiarias ou ervas aromáticas, utilizando diferentes leveduras fermentando a temperaturas distintas, ou até alterando os recipientes de fermentação (trocando o inox por madeira) irá resultar em cervejas completamente distintas em aroma, sabor, cor, textura ou teor alcoólico.

Partindo de três grandes famílias (Ale, Lager e Fermentação espontânea), as cervejas são desmultiplicadas em inúmeros estilos e sub-estilos que estão explanados por exemplo no BJCP (Beer Judge Certification Program), uma organização que visa apoiar os produtores de cerveja e sidra, padronizando os diferentes produtos. Este guia é utilizado como referência na maioria dos concursos internacionais de cerveja.

Os ingredientes

Água

O ingrediente utilizado em maior quantidade na produção de cerveja (mais de 90% da cerveja é água). Apesar de ser possível produzir cerveja com qualquer água, muitos dos estilos estão relacionados com a sua composição. É frequente a manipulação da mesma, nomeadamente no ph e minerais, adequando a um determinado estilo.

Malte

Para utilizar na produção da cerveja, o cereal deve ser maltado previamente. A maltagem consiste na hidratação do cereal, por forma a provocar a sua germinação. Ao fim de aproximadamente 4 dias, este processo é interrompido por secagem. Durante a germinação, são ativadas enzimas, fundamentais na conversão do amido em açucares, durante a fase de brassagem. A base das cervejas é a cevada, mas pode ser utilizado também malte de trigo, aveia, centeio, e cereais não maltados como arroz e milho.

Durante a fase de secagem do malte, pode ser utilizado mais ou menos calor, provocando diferentes níveis de torrefação, que vai dar diferentes notas aromáticas e cor à cerveja.

Lúpulo

Da família das Cannabaceae, é uma planta trepadeira, que pode atingir 7 metros de altura. Apesar de ser natural de climas com estações bem definidas, nomeadamente Europa, é hoje cultivado em quase todo o mundo, inclusive China, América do Norte e Austrália. A sua flor de cor verde (que contém a lupulina) tem propriedades conservantes, razão pela qual começou a ser utilizada na produção de cerveja. Com a evolução tecnológica, nomeadamente a conservação em frio e a pasteurização, o lúpulo é sobretudo utilizado na indução de aroma e amargor.

Leveduras 

A levedura de cerveja é um microrganismo unicelular responsável pela transformação dos açucares em álcool. Da família Saccharomyces Cerevisiae, podem ser utilizadas diferentes estirpes em função do tipo de cerveja que se pretende produzir. No caso da fermentação espontânea, podem entrar vários tipos de leveduras e bactérias no processo de fermentação.

Processo de fabrico

Moagem do cereal 

Para cada cerveja, são pesados os diferentes cereais, na proporção adequada. A moagem consiste em quebrar o grão, mantendo a sua casca intacta, pois esta será importante na fase de filtragem.

Brassagem

Na panela de brassagem, o cereal moído é misturado com a água. Por ação da temperatura, em diferentes patamares (não ultrapassando os 80 graus), são ativadas enzimas que irão converter as proteínas em aminoácidos e o amido em açúcares. A utilização de mais ou menos cereal, terá impacto na quantidade de açúcar fermentável obtido, que será mais tarde convertido em álcool.

Filtração

Após a brassagem, o mosto é retirado para a panela de filtragem, onde é feita a separação da matéria sólida do líquido açucarado. O fundo desta panela contém uma placa de inox com ranhuras, por onde vai escoar o líquido. A casca do cereal é de extrema importância nesta fase, pois vai impedir que a maioria das partículas sólidas passem pelas ranhuras e se voltem a juntar ao mosto. No final da filtragem é feita a lavagem da dreche, que consiste na adição de mais água quente à matéria sólida, permitindo extrair parte do açúcar que esta ainda contém. O mosto segue para a panela de ebulição e a dreche é recuperada para alimentação animal ou compostagem.

Ebulição

Após a filtração, o mosto é elevado à temperatura de fervura e são adicionados lúpulos. Nesta fase, ocorrem várias transformações: eliminação de substâncias aromáticas não desejáveis por evaporação (nomeadamente DMS); isomerização do ácido alfa do lúpulo que irá dar amargor à cerveja; coagulação de complexos proteicos e polifenois eliminados posteriormente no Whirlpool, permitindo a clarificação do mosto;

Arrefecimento

Terminada a ebulição, o mosto é enviado tangencialmente para um novo tanque designado de Whirlpool, provocando um efeito parecido com a centrifugação, permitindo eliminar a maioria das partículas sólidas.

Ao esvaziar o tanque de filtração, o mosto passa por um permutador de placas, de modo a arrefecer a pelo menos 20 graus. A água do arrefecimento é reservada e posteriormente utilizada nas novas produções ou limpeza dos equipamentos.

Fermentação 

A fermentação ocorre normalmente em tanques cilindro-cónicos isobáricos (controlo de pressão) e isotérmicos (controlo de temperatura). Assim que o mosto é transferido para o tanque de fermentação, são adicionadas imediatamente as leveduras. Em função da temperatura de fermentação, as cervejas dividem-se em 2 principais grupos. São utilizadas leveduras específicas, que conferem características distintas à cerveja:

  • Ale e fermentação espontânea – Cervejas de fermentação alta (fermentam entre os 18 e 22 graus). Ao fermentar a esta temperatura, as leveduras conferem à cerveja notas aromáticas intensas, normalmente frutadas. Nesta família podemos incluir as ale inglesas, as weiss alemãs ou as triple belgas. No caso da fermentação espontânea, esta é realizada à temperatura ambiente sendo o mosto colocado em barricas de madeira, segundo um método ancestral, tal como as Lambic e Red Flanders.

  • Lager - Cervejas de fermentação baixa (fermentam entre os 9 e 12 graus). Ao fermentar a esta temperatura, as leveduras conferem à cerveja características próximas da matéria prima, nomeadamente o cereal utilizado. São exemplo as pilsner ou marzen.

Maturação e envelhecimento

Terminada a fermentação, a cerveja é sujeita a um choque térmico, próximo dos 0 graus, permitindo a sedimentação das leveduras e partículas sólidas em suspensão, estabilizando assim a cerveja antes do enchimento. Algumas cervejas mais alcoólicas podem ser transferidas para barricas de madeira, para envelhecimento. Dependendo do estilo, poderão ser filtradas.

Enchimento e packaging

Muitos dos cervejeiros artesanais adicionam levedura e açúcar no momento do enchimento, provocando uma segunda fermentação com o objetivo de carbonatar e estabilizar, no entanto, o método mais comum é a carbonatação forçada no final da maturação e enchimento isobárico.

O enchimento é normalmente efetuado para garrafa, barril ou beer drive. No caso dos Brewpubs o consumo é feito diretamente do tanque de fermentação.