Redução do desperdício: entre a abundância e a urgência de equilibrar as necessidades alimentares

FOTOGRAFIA DAVIES DESIGNS STUDIO/ UNSPLASH
Este número da TecnoAlimentar marca, para mim, um momento especial. Assino, pela primeira vez, o editorial desta publicação num gesto de continuidade, após mais de uma década de liderança e 43 edições conduzidas pelo Professor Doutor Rui Alves. É com responsabilidade, mas também com ambição renovada, que abraço esta missão de assinar este texto e manter a revista como um espaço de referência para o pensamento técnico-científico e industrial no setor agroalimentar, um setor que, apesar da sua relevância estratégica, continua a ser pouco valorizado e estruturalmente desequilibrado.
Vivemos tempos de paradoxos alimentares. De um lado, prateleiras cheias, frutas reluzentes calibradas ao milímetro, filetes de peixe perfeitamente dispostos no gelo e a promessa de frescura pronta a consumir. Do outro, zonas de conflito, escassez e insegurança alimentar agravada por guerras duradouras, privando milhões do acesso a alimentos básicos. Neste mundo, onde a abundância convive com a carência, é eticamente insustentável não haver políticas de combate ao desperdício de alimentos frescos como acontece com hortofrutícolas descartados por não corresponderem a padrões estéticos, pescado subvalorizado por não se adequar aos critérios comerciais ou desadequado planeamento no retalho que promove muitas vezes a produção excedentária de tantos outros bens alimentares frescos. No seio desta problemática, os alimentos frescos, pela sua elevada perecibilidade e/ou sensibilidade à gestão pós-colheita, abate ou captura, representam uma fatia considerável do desperdício ao longo da cadeia agroalimentar.
Este número da TecnoAlimentar convida, por isso, à reflexão e à ação. A academia e a indústria não hesitaram em responder ao desafio lançado pelo nosso editor convidado, a Professora Doutora Beatriz Oliveira, cujas preocupações sobre o tema têm sido amplamente expressados nos mais diversos foruns. Os artigos reunidos no dossier, também alinhados com estas preocupações, propõem caminhos concretos para um sistema alimentar mais justo e eficiente. Produtos que não chegam à mesa pelos canais habituais podem, com o apoio científico, ter um percurso circular, com a valorização das suas propriedades e componentes em todas as fases de transformação.
Entre os temas em destaque, analisam-se estratégias de valorização de frutas frescas e subprodutos hortofrutícolas, sem esquecer os principais pontos críticos de desperdício em cadeias agroalimentares insulares, onde se mapeiam com rigor os fluxos de desperdício agroalimentar e propõem soluções adaptadas à escala e especificidades locais. Entre as ilhas e o continente existe ainda um mar, generoso mas finito, que exige de nós respeito e responsabilidade. A quantidade de pescado fresco que não chega ao consumo humano, por falta de canais adequados de valorização, é também alvo de estudo e preocupação de unidades de investigação que meritoriamente apoiam este cluster.
A este quadro junta-se a perspetiva de um agente económico com forte presença nos setores da restauração coletiva e da distribuição no canal HORECA que, na entrevista deste número, partilha a sua abordagem estratégica à redução do desperdício, com especial incidência na gestão de frescos. A integração de boas práticas operacionais e soluções tecnológicas adaptadas à escala e complexidade do setor revela o papel estruturante que os operadores logísticos e de fornecimento coletivo podem desempenhar na mitigação de perdas de produtos frescos.
E porque a mudança começa muitas vezes em casa, aborda-se o desperdício alimentar no contexto doméstico. Muitas vezes fruto de desinformação, hábitos enraizados ou escolhas impulsivas. Reduzir o desperdício não é apenas uma meta técnica é também um imperativo moral, um exercício à escala planetária.
No que diz respeito aos esforços do lado de quem investiga e produz conhecimento, é tempo de reequilibrar prioridades. Os princípios de segurança alimentar estão hoje bem definidos e aplicados através de regulamentação e sistemas de controlo robustos. O conhecimento sobre a composição nutricional dos alimentos e dos seus subprodutos encontra-se amplamente consolidado na literatura científica. Depois de décadas de investigação e milhares de euros investidos na exploração destes temas, torna-se agora prioritário avançar para a concretização de soluções práticas que reduzam, de forma efetiva, o desperdício ao longo de toda a cadeia de valor.
Deste modo, é urgente menos diagnóstico e mais implementação, com inovação aplicada, articulação entre agentes e compromisso efetivo com a sustentabilidade do sistema alimentar.
Ao Professor Rui Alves, expresso o meu reconhecimento pelas conversas, pelos textos inspiradores, que despertaram, também, os olhares atentos da indústria e de investigadores. Se hoje encontramos nas prateleiras inúmeros produtos alimentares com origem em conhecimento aplicado e orientações técnicas consistentes, muito se deverá à sua visão e persistência que imprimiu nessas publicações. Mais, estou certa que continuará na retaguarda enquanto tiver forças.
Que esta leitura continue a inspirar mudança.
Sub-diretora da TecnoAlimentar
Se quiser colocar alguma questão, envie-me um email para info@tecnoalimentar.pt
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