A Água Viva da Logística

FOTO CHUTTERSNAP/ UNSPLASH

"Estamos na Páscoa." As mesas estão fartas e variadas, cheias de iguarias, frutos da terra e do mar, vindos de todos os cantos do mundo. O que antes era local, hoje é global: o azeite do Mediterrâneo convive com mariscos da Ásia, os vinhos tão portugueses são degustados em conjunto com aromas tropicais… Nada disto seria possível sem a logística, essa água viva que corre, invisível, por entre fronteiras e continentes.

No capítulo 4 do Evangelho segundo São João, Jesus encontra uma mulher samaritana junto ao poço de Jacó. Ela foi buscar água, mas Jesus convida-a para algo maior: “Se tu conhecesses o dom de Deus… ele dar-te-ia água viva”. A mulher, presa à lógica do quotidiano, não compreende de imediato, mas Jesus fala de um fluxo que transcende as limitações humanas: uma fonte que brota para a vida eterna.

De certo modo, essa imagem ecoa nos sistemas que regem o nosso mundo físico. Para Kaoru Ishikawa (por muitos considerado o pai da gestão da qualidade japonesa), a qualidade, como a água viva, precisa de ser cultivada por todos, como parte de uma cultura de disciplina, organização e melhoria contínua. Ishikawa acreditava que as raízes confucionistas do pensamento japonês moldaram esse povo a aceitar regras colectivas, respeitar processos e a dar prioridade ao bem comum. Em oposição, considerava que os povos ocidentais, de matriz cristã, com uma forte inclinação para o personalismo e o improviso, sempre iriam encontrar mais obstáculos na engrenagem industrial e na logística. Deming, um guru da qualidade que divulgou e desenvolveu o “ciclo da qualidade”, ou “ciclo PDCA”, e que ajudou a reconstruir o Japão do pós 2ª guerra mundial, via naquele país um terreno fértil para as suas ideias: disciplina, método e aceitação do ciclo PDCA como parte da vida na empresa.

Outro guru da qualidade, Joseph Juran, criador da “trilogia da qualidade”, referia o mesmo: no Japão, a qualidade não era um departamento, mas uma missão comum! A cultura japonesa permitia que cada elo, desde o operário ao homem forte no topo da hierarquia, se visse a si próprio como parte de algo maior.

Na mesa da Páscoa, estas visões ganham corpo. Cada produto chega à nossa mesa, farta e variada, porque alguém, algures, fez o seu trabalho com precisão, seguindo um fluxo bem orquestrado. E como a mulher de Sicar, talvez também nós possamos aprender a ver para além do que é aparente: por trás de cada produto convenientemente embalado, há um mundo de processos, decisões, pessoas: há logística, há cultura, há fé na ordem das coisas! Mas claro, os ecologistas estão ali no canto da sala. Olham para a mesa farta com um misto de deslumbramento e taquicardia. Querem o chocolate da América do Sul, o salmão da Noruega e o caju biológico do Brasil. Mas querem também que nada disto venha de avião ou de navio, que não use plástico nem energia fóssil, nem papel de embrulho decorado com tinta tóxica. Pedem - e com razão - que se realize um milagre: que a logística seja ao mesmo tempo rápida, barata, limpa e invisível.

Talvez o desafio da nossa era seja precisamente esse: fazer caber no mesmo prato o apetite pela abundância e a fome de futuro. E, quem sabe, beber dessa tal água viva sem deixar rasto de garrafa!

Editorial da TecnoAlimentar nº 43, abril/ junho 2025 dedicada ao tema "Desafios na logística"

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