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Revista TecnoAlimentar

Tecnologia de produção do queijo Serpa DOP: tradição, inovação e fatores limitantes

A presente revisão de literatura foca-se no queijo Serpa, um dos queijos tradicionais portugueses com DOP, detentor de atributos organoléticos únicos, bastante apreciados pelos consumidores. 

Queijo Serpa DOP

Por: Helena Araújo-Rodrigues, Freni K. Tavaria, Maria Teresa P. G. dos Santos, António P. L. Martins, João Dias, Nuno Alvarenga, Manuela Pintado

Nas últimas décadas, as queijarias artesanais foram-se adaptando no sentido de melhorar a eficiência do processo tecnológico, bem como otimizar as condições de higiene e segurança.

O uso de leite de ovelha cru e coagulante vegetal (Cynara cardunculus L.) no fabrico do queijo Serpa DOP culmina no desenvolvimento de um sabor forte  e requintado, acoplado a uma textura semi-mole e cremosa. No entanto, o uso de leite cru nestes produtos pode levantar questões a nível de qualidade e segurança alimentar, especialmente em mercados que não admitem exceções à regulamentação em vigor.

Consequentemente, neste trabalho são discutidos os aspetos tecnológicos associados ao fabrico do queijo Serpa DOP, no sentido de identificar lacunas e limitações a nível microbiológico e físico-químico e propor estratégias para ultrapassar estas questões.

Na Península Ibérica, a produção de queijo artesanal remonta à ocupação romana, possuindo uma forte relevância económica e cultural devido ao seu papel na agricultura regional e à extensa herança quanto à tecnologia de produção e perfil sensorial (Cogan e Rea, 1996; Freitas e Malcata, 2000).

De forma a preservar as especificidades e garantir a qualidade excecional dos queijos tradicionais, alguns destes produtos foram registados sob mecanismos de proteção de designações e menções, nomeadamente, Denominação de Origem Protegida (DOP) e Indicação Geográfica Protegida (IGP), de acordo com a regulamentação europeia. Atualmente, em Portugal, treze queijos tradicionais são protegidos com selo DOP e um pelo selo IGP (Regulamento EU N° 1151/2012).

Todos os queijos tradicionais portugueses são originalmente produzidos com leite cru e os queijos DOP, os de maior notoriedade entre os queijos tradicionais, mantêm essa particularidade, que permanece obrigatória pela regulamentação em vigor. A maioria utiliza leite de ovelha e/ ou cabra no seu fabrico, exceto os queijos açorianos Pico e São Jorge, que usam leite de vaca. Os queijos Azeitão, Castelo Branco, Évora, Nisa, Serpa, Serra da Estrela e Terrincho são produzidos com leite de ovelha, enquanto o queijo Cabra Transmontano é produzido com leite caprino. Relativamente aos restantes queijos DOP portugueses, nomeadamente o Amarelo da Beira Baixa, Picante da Beira Baixa e Rabaçal, usam misturas de leites de ovelha e cabra. O queijo Mestiço de Tolosa, que possuí selo IGP, é também produzido com a mistura destes dois tipos de leite (Council Regulation EEC 2081/92, 1992; Freitas e Malcata, 2000). A localização geográfica dos queijos DOP e IGP portugueses, bem como o tipo de leite usado na sua produção, encontra-se ilustrado na Figura 1.

Apesar da extensa herança cultural dos queijos tradicionais portugueses, relativamente ao processo de produção e às características sensoriais, o uso de leite cru sem qualquer tratamento térmico pode levantar questões a nível de qualidade e segurança alimentar, especialmente em mercados que não admitem exceções à regulamentação. Consequentemente, torna-se crucial discutir os aspetos tecnológicos associados aos queijos tradicionais portugueses, no sentido de identificar mecanismos de autodefesa, mas também lacunas e limitações a nível microbiológico e físico-químico, e ao mesmo tempo propor alternativas para ultrapassar estes problemas.

A presente revisão de literatura foca-se no queijo Serpa DOP, um dos queijos tradicionais portugueses mais famosos, com propriedades de textura e sabor muito apreciadas pelos consumidores. Neste artigo serão discutidas todas as fases do processo de produção e como algumas variações tecnológicas podem influenciar as propriedades finais deste produto. Paralelamente, algumas sugestões serão propostas com o intuito de contribuir para o melhoramento da qualidade e segurança deste queijo tradicional.

A origem do queijo Serpa DOP

Apesar da origem do queijo Serpa não estar definida temporalmente, existem vestígios arqueológicos que indiciam a prática do fabrico de queijo, na região de Serpa, desde a Idade do Cobre. Entre os documentos mais antigos que atestam a importância da pastorícia e da produção de queijo em Serpa encontram-se o foral de D. Dinis (1295), o foral de D. Manuel (1513), o relato da visita de D. Sebastião ao Alentejo (1573), ou a descrição dos produtos presentes na Exposição Universal de Londres (1862) e de Paris (1878).

No entanto, um dos documentos mais relevantes relaciona-se com o Almoxarifado de Serpa, onde está documentada a produção de queijo de ovelha e o número de queijarias no termo de Serpa entre 1690 e 1832 (Dias, 1997). A descrição mais antiga do fabrico de queijo na região de Serpa é da autoria de Henry Frederick Link, botânico alemão, aquando da sua passagem por Mértola e Serpa, em 1797. Nesta descrição é referido com algum detalhe o uso de cardo, o seu fabrico inteiramente manual, e ainda a produção de requeijão (Link, 1801).


FIGURA 1. Distribuição geográfica dos queijos tradicionais portugueses com Denominação de Origem Portuguesa (DOP) e Indicação Geográfica Protegida (IGP). As diferentes cores correspondem ao tipo de leite usado no processo de fabrico.

Acredita-se que a origem deste queijo poderá estar relacionada com a transumância entre o Campo Branco (Baixo Alentejo), o campo das Idanhas e a Serra da Estrela, devido à semelhança de ingredientes e método de fabrico dos queijos destas regiões (Freitas et al., 2000; Roseiro et al., 2003a; Roseiro et al., 2003b).

No entanto, as diferentes espécies ovinas classicamente usadas para a produção de leite, no caso do queijo Serra da Estrela a raça Borladeira e, no caso do queijo Serpa a raça Merino, bem como as diferentes áreas de pasto, ordenha e condições climáticas entre as duas regiões contribuíram para a diferenciação sensorial destes produtos (Roseiro et al., 2003b).

A partir de 1985, com a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, iniciaram-se os trabalhos com vista ao registo do queijo Serpa DOP, concretizado em 1996 através do Regulamento (CE) Nº 1107/96 e de acordo com o estabelecido no Regulamento (CEE) Nº 2081/92, entretanto revogado pelo Regulamento (UE) Nº 1151/2012, atualmente em vigor. Neste regulamento estabelecem-se as regras relativas à proteção de DOP e de IGP dos produtos agrícolas.

O queijo Serpa é um queijo alentejano produzido com leite de ovelha cru e coagulante de origem vegetal (extratos de flor do cardo Cynara cardunculus L.), sem a adição de qualquer cultura microbiana inicial, resultando num perfil de textura e sabor único. O queijo Serpa possui uma textura cremosa e semi-mole e um sabor forte e requintado, sendo caracterizado como ligeiramente picante (Santos et al., 2018; Roseiro et al., 2003c).

A região de produção do queijo Serpa DOP (Figura 1; Tabela 1) inclui os municípios de Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Beja, Castro Verde, Cuba, Ferreira do Alentejo, Mértola, Moura, Ourique, Serpa e Vidigueira bem como algumas regiões de Alcácer do Sal (Torrão), Grândola (Azinheira dos Barros), Odemira (Colos e Vale de Santiago) e Santiago do Cacém (São Domingos, Alvalade e Abela) (Decreto Regulamentar 39/87, 1987).

TABELA 1. Especificações do selo de Denominação de Origem Protegida (DOP) para o queijo Serpa.

Dados de produção

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) registou-se uma redução acentuada na produção de queijo de ovelha em Portugal a partir de 2000 até 2014, acentuando-se este decréscimo em 2008 devido à crise económica. Entre 2002 e 2009 registou-se um decréscimo de produção de 4% no caso dos queijos DOP e IGP, e de 5% no caso dos queijos de ovelha.

No caso do queijo Serpa, em 2002 foram produzidos 60 000 kg de queijo, enquanto em 2015, foram produzidos 50 300 kg (Tabela 2; INE – Estatísticas agrícolas, 2000-2018). Esta descida resultou possivelmente de dificuldades genéricas no sector leiteiro, muito por via do acréscimo dos custos de produção face à limitada valorização dos produtos, inclusivamente com algum abandono de atividade por parte do setor da produção de leite (Tabela 2), e de decisões políticas comunitárias, como, por exemplo, o desmantelamento do sistema de quotas, e a nível nacional, na implementação de programas de apoio (INE 2016, 2018).

No entanto, desde 2015 parece registar- se uma tendência para a estabilização e até para um ligeiro aumento da produção, quer para os queijos de ovelha, quer para a maioria dos DOP. No caso do queijo Serpa registou-se um aumento em 2017 para 72 250 kg de queijo produzido (Tabela 2; INE, 2000-2018). Esta evolução deve-se provavelmente ao  desagravamento da crise e ao abrandamento e conclusão na implementação de medidas no âmbito das exigências legais comunitárias, em termos de produção animal e alimentar (INE 2016, 2018).

Processo de produção

No Decreto-Lei Nº 39/87 de 29 de junho é definida a área geográfica de produção, são fixados os parâmetros que garantem a genuinidade e qualidade do queijo Serpa e são ainda descritas as condições para a constituição de uma entidade certificadora, figura que evolui posteriormente para a designação de Organismo Privado de Controlo e Certificação (OPC). O OPC do Queijo Serpa é atualmente a CERTIS – Controlo e Certificação, Lda. Os parâmetros de especificação DOP para o queijo Serpa serão discutidos nos subtópicos seguintes e encontram- se resumidos na Tabela 1.

Apesar de diversas queijarias produzirem queijo de ovelha semelhante ao queijo Serpa DOP, atualmente, apenas seis queijarias (queijaria Guilherme, Unipessoal, Lda., queijaria Vasco & Pacheco, Lda., queijaria Artesanal Moinho de Almocreva, Lda., queijaria Herdade dos Cotéis, Lda., queijaria Eira da Vila, Lda. e queijaria TradiSerpa, Lda.) produzem este produto com marca de certificação DOP (Tabela 1).

Nas últimas décadas as queijarias artesanais foram-se adaptando no sentido de processar maiores quantidades de matéria-prima, de acelerar e melhorar o processo tecnológico tornando- o mais eficiente, bem como de otimizar as condições de higiene e segurança (Freitas et al., 2000; Roseiro et al., 2003c).

Leite de ovelha cru

Raça Ovina

Tradicionalmente o leite utilizado para o fabrico de queijo Serpa era produzido por ovelhas da raça Merino e, em menor escala, também da raça Campaniça. O leite da raça Merino possui uma composição química muito rica em proteína e gordura, associada a um baixo rendimento quanto à produção de leite.

Apesar de uma composição físico-química mais rica do leite estar, em geral, relacionada positivamente com as propriedades de textura e sabor do produto final (Bencini e Pulina, 1997), os animais desta raça foram sendo gradualmente substituídos por raças mais produtivas e especializadas na produção de leite, como é o caso das raças exóticas Lacaune e Assaf (Roseiro et al., 2003b). Quando a regulamentação DOP foi estabelecida, a raça autóctone relacionada com a origem do queijo Serpa estava já em acentuada regressão e a legislação DOP não especificou o fator “raça ovina”, tendo apenas o leite que ser produzido exclusivamente na área geográfica delimitada para a produção deste queijo (Tabela 1; Decreto Regulamentar 39/87, 1987; Council Regulation EEC2081/92, 1992).

Principais condicionantes das propriedades físicas, químicas e microbiológicas

A composição do leite desta espécie é extremamente dependente da estação do ano, sendo a produção geralmente sazonal, e no caso do queijo Serpa, ocorrendo tradicionalmente de outubro a junho (Roseiro et al., 2003b). As altas temperaturas registadas no Verão resultam num pasto menos nutritivo, que afeta diretamente a composição e rendimento do leite de ovelha, podendo levar à produção de queijos diferentes do habitual e com defeitos organoléticos (Bencini e Pulina, 1997; Martins e Vasconcelos, 2004).

A qualidade microbiológica e físico-química da matéria-prima são fatores condicionantes no fabrico de queijo, sobretudo quando estes produtos são produzidos com leite cru, pela maior probabilidade de possuírem uma carga microbiana superior. Devido à sua composição, o leite é um excelente meio de conservação, desenvolvimento e transmissão de diversos grupos microbianos. Desta forma, o leite de pequenos ruminantes, para o fabrico de produtos com leite cru, deve apresentar contagens de microrganismos a 30 ºC inferiores ou iguais a 5,70 log Unidades Formadoras de Colónias por mL (UFC/mL), no que se refere à média geométrica obtida das contagens efetuadas durante um período de dois meses, com pelo menos duas colheitas mensais de leite (Reg 853/2004).

Para leites provenientes do mesmo produtor parece verificar-se essencialmente heterogeneidade na composição físico-química e microbiológica entre as diferentes estações do ano, embora a suscetibilidade a imponderáveis seja grande, dependendo, por exemplo, dos cuidados a nível das práticas ao longo do processo de obtenção, conservação e processamento do leite. É aliás reconhecido que, por variadas razões, as contagens microbianas 20médias de leite cru de ovelha são em regra superiores às obtidas para leite de vaca (Montel et al., 2014; Verraes et al., 2014).

Geralmente, na microflora do leite, o número de bactérias é sempre superior ao de fungos, e os grupos predominantes, as bactérias do ácido láctico (BAL) e as enterobactérias, sendo, no entanto, registada uma extensa variabilidade de espécies e estirpes entre os diferentes produtores (Montel et al., 2014). Roseiro et al. (2003b) estudaram a composição do leite usado na produção de queijo Serpa de diferentes produtores, encontrando diferenças significativas nas contagens microbiológicas de BAL e em diversos parâmetros bioquímicos como o teor de proteína e a acidez (Roseiro et al., 2003b).

Adicionalmente à variação genética e sazonal, vários fatores referentes ao maneio dos animais (alimentação, tamanho do rebanho, extensão da produção dos animais e condições e tempo de ordenha) bem como parâmetros fisiológicos (por exemplo, período de lactação e idade do animal), contribuem para diferentes composições físico-químicas e microbiológicas do leite e, consequentemente, para uma elevada heterogeneidade de características do produto (Bencini e Pulina, 1977).

Mastites

As mastites são infeções na glândula mamária bastante incidentes em pequenos ruminantes, podendo comprometer a sua função mamária e, num estágio mais avançado, levar à morte do animal. Esta infeção pode ter origem bacteriana, fúngica ou vírica, sendo as do primeiro tipo as mais frequentes, especialmente pelos géneros Streptococcus e Staphylococcus. As mastites afetam significativamente a produção e qualidade de leite, podendo levar a uma contaminação do leite e queijo com estes microrganismos patogénicos, possuindo deste modo um forte impacto económico neste setor (Guerreiro et al., 2013).

Para além da forma clínica desta infeção, facilmente detetável pelos produtores, estes animais podem ainda apresentar formas subclínicas de mastite, tornando difícil a sua deteção e tratamento. Neste contexto Guerreiro et al. (2013) focaram-se na importância da deteção precoce e subclínica desta infeção, desenvolvendo uma abordagem molecular para a sua deteção em diferentes raças ovinas (Merino, Campaniça e Lacaune) tipicamente usadas na produção de leite a sul de Portugal, sendo fulcral implementar este tipo de abordagens para uma melhor qualidade e segurança no produto final (Guerreiro et al., 2013).

Consequentemente, devido à alta incidência de mastites neste setor e à grande diversidade na composição do leite torna-se extremamente relevante implementar medidas rápidas e fáceis para monitorizar a composição física, química e microbiológica do leite, para avaliar diretamente a qualidade e segurança do leite cru usado na produção de queijo Serpa DOP (Araújo-Rodrigues et al., 2019).

Ordenha

Na área delimitada para a produção dequeijo Serpa DOP, o processo de ordenha é efetuado duas vezes por dia, sendo que as tecnologias atuais de colheita permitem ordenhar um maior número de ovelhas num menor período de tempo. Durante as últimas décadas, no sentido de maximizar o aproveitamento de matéria-prima foram implementados sistemas de ordenha automáticos.

O leite ordenhado passa diretamente das tetinas, através de um circuito fechado, para um tanque de refrigeração (4 ºC), onde se mantém até ser encaminhado para a queijaria, acondicionado em recipientes de inox (Roseiro et al., 2003b).

As condições de higiene, o controlo de mastites e a qualidade e duração do processo de ordenha, acoplado aos cuidados durante o fabrico do queijo, são de extrema importância para o controlo da presença de microrganismos indesejáveis (deteriorantes e/ou patogénicos). A partir dos anos 80, a limpeza e desinfeção de equipamentos e tetos do animal, bem como a implementação de práticas de refrigeração nos países industrializados contribuíram significativamente para a melhoria da qualidade microbiológica do leite (Montel et al., 2014).

Refrigeração do leite

As práticas de refrigeração do leite cru antes do fabrico do queijo podem, no entanto, alterar o equilíbrio microbiano do leite cru. Nas condições de refrigeração, sobretudo quando as temperaturas não são devidamente monitorizadas e garantidas, podem proliferar bactérias psicrotróficas, naturalmente presentes no leite, podendo atingir níveis superiores a 105 UFC/mL. São sobretudo bactérias gram negativas do género Pseudomonas spp., mas também Acinetobacter spp. ou Enterobacteriaceae (por exemplo, Hafnia alvei), todas identificadas como causadoras de alterações no leite devido à sua atividade lipolítica e proteolítica.

As contagens microbiológicas totais no leite de ovelha cru podem aumentar mais de 3 log UFC/ mL após armazenamento do leite 3 dias a 8 °C ou 7 dias a 4 °C, o que altera completamente o equilíbrio da microflora natural do leite. A presença destes microrganismos no leite em concentrações iguais ou superiores a 106 UFC/mL, diminui o rendimento e a qualidade da coalhada, afetando diretamente as características do produto final (Montel et al., 2014).

Continua

Nota: Artigo publicado originalmente na Tecnoalimentar 22.

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