FacebookLinkedin

Revista TecnoAlimentar

«Quem tem a produção animal deve ter a indústria»

humberto

Humberto Rocha, Presidente do Conselho de Direção da Escola Universitária Vasco da Gama, analisa nesta entrevista a indústria da carne fresca em Portugal. Uma conversa onde se falou sobre a formação, os mercados nacional e internacional e as tecnologias que estão na base do setor e o empurra no caminho do desenvolvimento.

Entrevista e Fotos: Ana Clara

TecnoAlimentar: Gostava de começar esta entrevista com uma radiografia do setor, até pela experiência que acumula não só na academia como também na indústria da carne fresca.

Humberto Rocha: Houve nos últimos 20 anos uma grande evolução relativamente à implementação de sistemas de controlo da qualidade da carne fresca, na certificação de processos, no processamento centralizado de carnes, nos processos logísticos, na gama de produtos oferecido ao cliente, no merchandising e na comunicação com o cliente. Por questões logísticas, os produtos alimentares passaram a ser entregues em plataformas logísticas e isso obrigou a indústria a adaptar-se. Encurtaram-se os tempos de encomenda e passamos a falar em níveis de serviço de 100%. E esta foi a grande transformação do princípio dos anos 90 do século XX, que começou pelas frutas e legumes e, depois, pelas carnes frescas, estendendo-se progressivamente a todos os perecíveis.

TA: Desde o início dos anos 90 até hoje passaram quase três décadas. Como evoluiu o setor (da carne fresca) e onde estamos hoje?

HR: O setor evoluiu muito. Esta evolução foi liderada claramente pela Moderna Distribuição e a indústria teve forçosamente que se adaptar e evoluir. Esta evolução foi conseguida pela incorporação de tecnologia, principalmente de corte e embalagem, acompanhada de muita formação interna. O grau de exigência aumentou em todos os aspetos e o setor subiu vários patamares em relação à forma como se trabalha nos mercados de referência.

TA: E quando é que esse grau de exigência sobe mais?

HR: A partir do momento em que se iniciam os processos de centralização de carnes frescas. Este é um processo que começa em Portugal, em 1998, com a entrada em funcionamento da Tonova – Processamento Centralizado de Carnes, Unipessoal Limitada. Posteriormente, quase toda a indústria se adaptou e criou as suas unidades de processamento centralizado de carnes e começa a oferecer um produto final fatiado, embalado em atmosfera protetora e que hoje evoluiu para outras tecnologias de embalagem.

TA: E em matéria de legislação?

HR: Temos de pensar o que esperam os consumidores, em termos de legislação. Esperam que a legislação seja suficientemente abrangente para salvaguardar a saúde dos consumidores e a saúde pública em geral e que o Estado tenha capacidade para a fazer, implementar e auditar. Depois cabe ao agente económico cumpri-la. A rastreabilidade da carne bovina é um sistema que funciona bem e que historicamente foi a primeira vez que se comunicou e se transmitiu confiança ao consumidor relativamente à carne fresca. Surge na sequência da crise da BSE, e surge como um imperativo técnico, mas que também tem impacto a nível comercial. É evidente que a rastreabilidade nada nos diz sobre a qualidade objetiva da carne, só nos diz que aquele produto alimentar resulta de um sistema que é rastreável. Mas recordo que em Portugal e na generalidade dos países europeus o único controlo oficial e de controlo da qualidade implementado é a inspeção sanitária de carnes frescas e pescado. É um trabalho extraordinário que é feito, é único e oficial. Quando entramos no outro conjunto de alimentos perecíveis é o operador económico que tem de cumprir a legislação e garantir ao consumidor o produto. E deve ser assim.

Legislação

TA: No campo do enquadramento legal, que lacunas ainda hoje temos?

HR: O mercado e a evolução do comércio internacional dos alimentos são tão rápidos e circunstanciais, que a implementação de alguns mecanismos de controlo de perigos e a implementação de algumas tecnologias foi por vezes mais rápida que a implementação da legislação aplicável.

TA: E aí cometeram-se erros?

HR: Não diria que se cometeram erros. A evolução dos processos industriais é sempre acompanhada pela evolução da Legislação aplicável. Era muito estranho o que se passava em Portugal nos anos 90: ainda não se consumirem picados como se consumiam no resto da Europa.

TA: Porque acha que isso aconteceu?

HR: Talvez por questões culturais, talvez porque não houve da parte da indústria a disponibilização dos produtos, não houve um investimento nos equipamentos necessários e mais uma vez foi a Distribuição que pôs ênfase e que alavancou este segmento e é aí que se vendem toneladas dessas commodities.

TA: É aí também que existe uma resistência deste setor?

HR: O setor ainda não consciencializou a ideia de que a produção, o abate, a desmancha, o processamento centralizado de carnes é um negócio de base tecnológica. E este negócio incorpora, de forma sistematizada, conhecimento técnico e científico para acima de tudo manter a sua competitividade. Existem em Portugal parques de máquinas com tecnologia, software igual a outros que existem na Europa. Mas o que falta é olhar para o setor e para as unidades fabris de forma integrada e sinérgica.

TA: Em que nível?

HR: Exatamente o de perceber que não é por se comprar uma máquina para cortar carne em porções de peso fixo, que faz uma leitura a laser da peça de talho, que diminui ao mínimo o desperdício, que se está a dar um grande passo tecnológico no sentido da competitividade da empresa, se a montante e a jusante essa máquina não estiver integrada num processo por si rentável. Não podemos ir a uma feira comprar tecnologia de forma isolada. Temos que fazer a análise integrada dos processos da empresa, reduzir os custos através de programas de lean management para ser competitivo e ter capacidade para investir em inputs tecnológicos. Aquilo que é a tecnologia de referência ou o sistema integrado, para mim, pode não ser o mesmo que é para o meu concorrente, pese embora estejamos a tentar obter o mesmo resultado final. Mas há ainda outro aspeto que gostava de abordar: a falta de associativismo ou colaboração na indústria. Eu defendo a ideia de que quem tem a produção animal deve deter a indústria. É assim em muitos países da Europa e em Portugal é um pouco diferente.

(Continua)

Nota: Esta entrevista foi publicada na edição n.º 15 da Revista TecnoAlimentar, no âmbito do dossier Carnes.

Para aceder à nossa edição impressa, contacte-nos através dos seguintes endereços:

Telefone 225899620

Email: marketing@agropress.pt