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Revista TecnoAlimentar

Quem se lembra do pão que havia dantes?

Por Manuel Rui F. Azevedo Alves, Diretor da TecnoAlimentar | Professor Coordenador, Grupo de Engenharia Alimentar, Instituto Politécnico de Viana do Castelo

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Já poucos serão os portugueses que se lembram do sabor dos muitos tipos de pão que havia por esse Portugal fora, principalmente de trigo, milho e centeio, mas também de aveia, alfarroba, bolota, etc.

Pães e boroas de múltiplas formas e sabores. A maior parte eram feitos a partir de espécies de cereais adaptadas ao nosso clima e aos nossos solos pobres, com raízes profundas para procurar água e nutrientes, gerando menores produções mas com grãos muito mais nutritivos.

As farinhas eram moídas por mós de pedra habilmente, movidas por rios de margens limpas e conservadas. As massas eram fermentadas por períodos longos, com espécies de leveduras selvagens (cuja preservação era também uma arte), daí resultando um maior enriquecimento nutricional e uma maior digestibilidade. Como aditivo só se usava sal, mas mesmo assim o pão mantinha-se fresco e sem bolor durante uma semana ou até mais.

As farinhas usadas hoje em panificação e pastelaria provêem de espécies melhoradas geneticamente, de grande produção e mais resistentes a pragas no campo, provenientes de sementes que enriquecem uma pequeníssima parte do mundo biotecnológico.

Os grãos, devido aos circuitos comerciais, necessitam de tratamentos muitas vezes questionáveis. E os melhoramentos genéticos estão longe de serem comprovadamente benéficos para a espécie humana.

A farinha deixou de ser farinha, para passar a ser um mix, com leveduras geneticamente melhoradas e múltiplos aditivos que conduzem a uma enorme facilidade e rapidez de fabrico: basta misturar água, mexer, levar ao forno e já está! As artes de padeiro e pasteleiro tendem a desaparecer, pois basta saber ler a receita que vem no rótulo da própria farinha: 9º ano e ordenado mínimo!

Numa época em que os consumidores estão ávidos de novidades e procuram novos produtos nutricionalmente mais equilibrados, porque não colocar no mercado esses pães e boroas de que já ninguém se lembra? Se é certo que sempre seremos importadores de cereais, creio que não será menos certo que existe já hoje uma larga franja de consumidores portugueses disponíveis para comprar um pão tradicional e pagar um pouco mais por ele.

Vantagens não faltariam: muitos solos pobres, tantas vezes abandonados ao eucalipto, poderiam sustentar muitas culturas tradicionais; muitas pessoas poderiam regressar ao interior e repovoar o país, recuperando cursos de água, moinhos e represas; muita dessa agricultura complementaria as infraestruturas turísticas já existentes, valorizando-se mutuamente; complementando-se a pecuária com o pastoreio para produzir leites dos quais somos deficitários, além de leite de ovelha e cabra que deixaria de ser importado (e até poderia exportar-se), haveria mais matos limpos e mais riqueza; e o nosso interior passaria a estar menos abandonado, mais bonito e mais preservado para as gerações futuras, que também precisam de um país para viver.

É claro que o que escrevi no parágrafo anterior pode parecer uma visão de quem não tem os pés bem assentes na terra. Seja! Mas acredito mais num jovem pastor de moto-quatro do que num agricultor de 70 anos a plantar carvalhos e azinheiras e a roçar mato de sol-a-sol; e em jovens agricultores bem apoiados por políticas que tenham o país inteiro como pano de fundo, do que em grandes planos produzidos em Lisboa por quem só vai perceber o que é necessário quando lhe faltar a água na torneira; e em ordenamentos florestais feitos por quem vive na e da floresta, do que feitos por quem luta por votos de quatro em quatro anos; e em indústrias que usem esses produtos da terra para dar ao consumidor os excelentes e nutritivos sabores ancestrais.

E, crimes à parte, talvez pudéssemos deixar de nos indignar com as calamidades que nos vão assolando todos os verões…

(continua)

Nota: Editorial da edição TecnoAlimentação 13

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