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Revista TecnoAlimentar

O papel das autoridades policiais e administrativas no âmbito da estratégia para a Segurança Alimentar na Europa - Parte II

Continuação do artigo "O papel das autoridades policiais e administrativas no âmbito da estratégia para a Segurança Alimentar na Europa - Parte I"

Investigação Segurança Alimentar Europa

Por: José Belmiro Alves1

1 Inspetor da carreira especial de Inspecção da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e Mestre em Relações Internacionais com o Mundo Árabe e Islâmico

No território nacional a criminalização das acções danosas contra a economia nacional através de legislação penal secundária útil à data de entrada em vigor do Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, por si só já não basta dada a complexidade logística das actuais estruturas do crime. As ramificações da contaminação intencional e da adulteração de produtos colocam em causa a protecção e assistência dos consumidores, o que deixa muito em causa a vida, a saúde e a integridade física das pessoas.

O enfoque da questão está no tipo de criminalidade que faz uso de microrganismos ou de toxinas, ou corrompe géneros alimentícios assente nos lucros milionários e para o qual o legislador português não talhou o diploma das infracções antieconómicas e contra a saúde pública. “Os sucessivos acontecimentos terroristas no setor alimentar verificados ao longo de décadas levaram a que, pela primeira vez, no domínio alimentar, emergisse nos EUA o conceito de defesa alimentar, cujo objetivo é adotar medidas preventivas da contaminação intencional de produtos, onde indivíduos motivados ideologicamente recorrem a agentes (biológicos, químicos, físicos ou radiológicos) com o intuito de causar prejuízos às organizações, governos ou à população em geral” (Severino, 2016).

Percorrendo o Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, rápido perceberemos a falta de visão do legislador de um mundo global no qual Portugal se encontra inserido, ao não acautelar a externalização do mercado nacional face aos graus de ameaça, como o bioterrorismo na cadeia alimentar, o que põe em causa a segurança da circulação dos géneros alimentícios.

De acordo com José Alves, “é na produção extensiva de alimentos e medicamentos que grupos de crime organizado espreitam as novas oportunidades que o mercado tem para oferecer e dessa forma redireccionam a sua estratégia no que tange às transacções comerciais nos mercados paralelos como a falsificação de medicamentos, produtos e suplementos alimentares” (Alves, 2016:11).

E ainda “Não há em território nacional, por exemplo, nas grandes superfícies comerciais, ou nos entrepostos comerciais, outra questão de segurança interna, nenhum dispositivo de monitorização, por exemplo, da toxina botulínica que poderá ser espalhada sobre reservatórios de água ou sobre géneros alimentícios nas grandes cadeias de supermercados através de um pequeno frasco de spray facilmente dissimulado, e transportado. A toxina t-2 é característica de culturas como o milho e o trigo e para produzi-la não é necessária tecnologia complicada com a agravante de não poder ser detectada por nenhum sistema de segurança” (Alves, 2016: 17).

É de fácil discernimento concluir que os bens jurídicos tutelados pelo Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, se encontram desfasados na previsão normativa em face da labiríntica realidade actual com uma consequência jurídica que deveria ser mais abrangente em termos de penas a aplicar. O mesmo é dizer ajustar os objectos da tutela de forma a haver maior repressão dados os resultados da actuação das estruturas criminosas. “A globalização, a exigência dos mercados e dos consumidores, tem vindo a impor às organizações a adoção de sistemas mais consistentes e eficazes para fazer face às necessidades atuais, no que concerne à segurança e qualidade alimentar. 

"As crescentes preocupações das empresas, governos e consumidores relativamente à contaminação intencional e fraude alimentar conduziram à emergência de novos conceitos e metodologias, como o da defesa alimentar, que visa essencialmente a proteção das Organizações, produtos e instalações, da contaminação intencional, adulteração e terrorismo alimentar” (Severino, 2016:1).

A grande linha orientadora do pretérito diploma deveria ser actualmente a previsão do planeamento de operações especiais como o é a Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro para o tráfico de armas, como julgo que o justifica a perigosidade que a toxina t-2 representa para a saúde pública e para a segurança alimentar, com corrupção de substâncias alimentares, como é exemplo da apreensão de 5,5 toneladas de produtos adulterados levada a cabo pelas autoridades sudanesas e ainda pesticidas e aditivos alimentares através de redes criminosas. 

Outra das grandes preocupações, o que justifica a similitude com as operações especiais no âmbito da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro é o facto constatado no terreno de falta de controlo sobre a introdução no território nacional de adubos, fertilizantes e fitofármacos através de corredores paralelos à revelia das autoridades policiais. “Esta iniciativa exige o esforço por parte dos governos para combater os acontecimentos de adulterações, os quais devem estar cientes das ameaças terroristas a que o país pode estar sujeito e do impacto que poderá ter sobre a cadeia alimentar. Para ir de encontro com estes esforços, as Organizações do setor alimentar devem dispor de meios e procedimentos para prevenir e antecipar situações de contaminação intencional ou adulteração” (Severino, 2016:1).

Desde o Tratado de Roma que o objectivo no espaço europeu é atingir elevados níveis de segurança no que à área alimentar diz respeito, em que géneros alimentícios de qualidade e seguros deveriam ser o primado das políticas da União Europeia, assentes em princípios como a livre circulação de mercadorias e protecção da saúde pública. Um dos exemplos desse esforço é o Regulamento (CE) n.º 178/2002 de 28 de Janeiro e ainda o Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril, o Regulamento (CE) n.º 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril e o Regulamento (CE) n.º 854/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho. Estes regulamentos e a criação da Europol têm desencadeado diversas operações nas mais distintas temáticas, como a designada Operação Tarantelo contra a pesca e comercialização ilegal de atum rabilho. 

O certo é que algo não está a correr de feição. Já na área económica, o produto confiscado fica muito aquém do desejado com milhões de euros de lucros ilegais, a avaliar pelos diversos escândalos de fraudes alimentares ocorridos na Europa, como a venda de carne de cavalo em vez de carne de vaca ou de ovos que continham substâncias proibidas. Isto acontece devido a falhas múltiplas nos controlos oficiais o que subtrai às economias lícitas milhões de euros de lucros. 

Investigação Segurança Alimentar Europa

Segundo John Spink, da Michigan State University, a fraude alimentar custa à indústria alimentar, a nível global, entre 30 e 40 mil milhões de dólares. “Cerca de 10% dos produtos alimentares são afetados por fraude alimentar. Considerando as retiradas frequentes do mercado de produtos, o risco para a saúde e os interesses económicos dos consumidores, a reputação da marca e respetivas consequências, a falsificação mundial de alimentos vale 1,7 biliões US$” (Roger Sexton undercurrentnews, 2015; BGFC executive chairman). Um dos exemplos mais recentes foi o caso da Melamina na China, Óleo de Colza, Metanol a Leste e o Horsegate (carne de cavalo).

Quando se fala de associações criminosas, ligamo-las à criminalidade violenta, como o tráfico de estupefacientes, a contrafacção de moeda ou o branqueamento de capitais. Esses, uma vez que já dispõem de circuitos de distribuição próprios, praticam fraudes alimentares com lucros de milhões de euros ao nível do tráfico de estupefacientes.

Da simbiose existente entre o crime organizado e grupos terroristas, como o Daesh, resulta um caldeirão de inúmeras figuras assimétricas que através de actos maliciosos, como a contaminação intencional por agentes biológicos, químicos, físicos e radiológicos, e a adopção de procedimentos que visem prevenir que actos desta natureza não se verificam aquando das inspecções nos entrepostos comerciais nem, por exemplo, nos operadores económicos que comercializam adubos, fertilizantes e fitofármacos. Nem no transporte destes produtos há qualquer preocupação com a segurança quanto a possíveis actos violentos a fim de os subtrair.

Segundo Elisabete Praia “A indústria A referiu não ter conhecimento do que se tratava, apesar de estar certificada pelo referencial ISO 22000 e de este considerar requisitos para controlo do bioterrorismo” (Praia, 2017: 26).

E ainda “ambas as indústrias possuíam vulnerabilidades no “Perímetro externo”, pois as vedações apresentavam falhas, não conferindo uma completa separação a partir do exterior. Enquanto a indústria A possuía uma vedação muito baixa que não conferia uma proteção adequada a partir do exterior e não realizava inspeções regulares ao perímetro industrial, nem possuía iluminação adequada nos períodos de menor luminosidade natural, a indústria B possuía uma parte da vedação descontinuada, o que possibilitava a entrada de intrusos a partir do terreno contíguo, apesar de realizar, pelo menos, duas inspeções diárias a todo o perímetro da unidade fabril e de possuir iluminação suficiente durante os períodos de menor luz natural” (Praia, 2017: 27).

Durante as inspecções é também observada outra falta de sensibilidade para as questões da segurança que se relaciona com a armazenagem de matéria-prima e produtos químicos, onde praticamente qualquer um tem acesso a estas áreas sensíveis. Vandalismo, sabotagem, terrorismo, é a realidade que assombra a segurança alimentar e não é por mero acaso que no pós Setembro de 2001 as autoridades policiais norte-americanas passaram a ter uma atitude mais proactiva para com a indústria alimentar, algo que em Portugal é considerado desnecessário. Tal poderá dar azo à existência de vulnerabilidades no abastecimento alimentar, o que propicia actos de adulteração e contaminação por agentes biológicos, químicos ou físicos.

Bactérias como a Salmonella typhimurium, a Salmonella enteritidis e a Shigella dysenteriae causam toxinfecções graves e serão o próximo modus operandi de grupos terroristas contra o Ocidente, dado o elevado número de vítimas e de danos nas economias nacionais de cada estado-membro da UE, uma vez a distribuição ser a uma escala global.

Perante o preteritamente explanado o papel da ASAE, enquanto órgão de polícia criminal, tendo por base de actuação o Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, entre outros diplomas já supra enunciados, quer internos, quer de origem comunitária, no combate de fenómenos criminais na área da segurança alimentar como na fiscalização económica, aplacando diversos riscos na cadeia alimentar. São necessários diplomas mais agressivos, com molduras penais mais duras, face aos numerosos problemas que a acção das multinacionais do crime acarretam e para os quais o legislador de há trinta e cinco anos não o concebeu, nem o legislador actual o faz fruto do demasiado garantismo do sistema jurídico português e de políticas irresponsáveis de decisores que, com a sua inacção, apenas alimentam ainda mais os monstros que o século XXI enfrentará. 

A prova disso é o facto de a falsificação de produtos fitofarmacêuticos ter aumentado, segundo a Associação Nacional da Indústria para a proteção das Plantas (ANIPLA), onde as substâncias tóxicas representam uma ameaça com repercuções incalculáveis para a saúde pública.

Relatórios da Associação Europeia de Protecção de Plantas (EPCA) ilustram que 7% do mercado do mercado dos pesticidas por produtos de contrafacção e comércio ilegal. Outra das preocupantes notícias é a falsificação de medicamentos que, segundo um estudo da ONU, rende cerca de vinte e quatro mil milhões de euros, o que constitui um problema de saúde pública a nível mundial. Isto apesar do lançamento no mercado da Directiva 2011/62/EU, que visa aplacar a introdução na cadeia de abastecimento de matérias que coloquem em causa a qualidade, a genuinidade e a composição de substâncias alimentares e medicinais o que viola os artigos 24.º e 25.º do Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, o artigo 282.º do Código Penal e ainda o artigo 14.º do Regulamento (CE) n.º 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho de 28 de Janeiro.

Devemos, com grande preocupação, reconhecer a existência de fraudes alimentares com gravíssimas repercussões na saúde pública, corrupção de substâncias alimentares que geram milhões de euros de lucros a organizações criminosas - que a par também se dedicam à contrafacção de vários produtos nas mais diversas áreas, com milhões em lucros que as autoridades policiais têm dificuldade em conter. Só uma máquina política bem montada tem escamoteado por diversas razões como acontece com os problemas de segurança e ordem pública por toda a Europa. 

Em Portugal, na primeira linha de fogo a fim de conter a fraude alimentar por força do Decreto-Lei n.º 237/2005 de 30 de Dezembro, subsequentes alterações, e pelo n.º 3 do artigo 51.º do Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, existe a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica como órgão de polícia criminal e de autoridade de polícia criminal e ainda a Direcção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), investida nas funções de autoridade sanitária veterinária e fitossanitária nacional, de autoridade nacional para os medicamentos veterinários e de autoridade responsável pela gestão do sistema de segurança alimentar. Consoante o grau de ameaça, a Polícia Judiciária (PJ) em contextos de terrorismo e bioterrorismo, onde também poderá intervir a Polícia de Segurança Pública por força da competência exclusiva quanto a armas e explosivos.

Em jeito de conclusão, por mais opiniões discordantes que haja e que a justificação das mesmas seja sempre a eterna questão dos direitos liberdades e garantias, os estados, neste século, ver-se-ão, aliás já está a acontecer, perante problemas gravíssimos. Existirão problemas como uma criminalidade cada vez mais subtil no modus operandi, empregue em termos tácticos a coberto de todo um submundo de sombras propiciado pela darknet, onde um novo tipo de criminalidade se movimenta com quase total liberdade, o que acarreta muitas dificuldades ao nível processual quando falamos de recolha de prova e posterior sustentação da mesma em audiência de julgamento.

Um mundo cuja fraude alimentar pode ter o seu epicentro num país e rapidamente arrastar-se para vários outros por força de uma globalização e em que assenta a rede mundial de comércio alimentar com temidas ameaças para a saúde pública.