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Revista TecnoAlimentar

O papel das autoridades policiais e administrativas no âmbito da estratégia para a Segurança Alimentar na Europa - Parte I

Neste artigo, tentei aclarar a urgente necessidade da tomada de mensurações efectivas e eficazes no combate ao flagelo que é a fraude alimentar e no aplacar das sucessivas tentativas de organizações criminosas de corrupção de substâncias alimentares, através de medidas preventivas e repressivas levadas a cabo por organismos como a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE).

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Por: José Belmiro Alves1

1 Inspetor da carreira especial de Inspecção da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e Mestre em Relações Internacionais com o Mundo Árabe e Islâmico

Fraude e corrupção de substâncias alimentares

A área alimentar não é tida ainda como um dos pilares da segurança interna e basta percorrer o código de processo penal para constatar que sobre a mesma há uma tímida previsão normativa vertida no artigo 282.º do Código Penal, no artigo 24.º das Infracções Antieconómicas e Contra a Saúde Pública e na Lei Quadro da Política Criminal, que não acautela as exigências que as associações criminosas implicam na externalização da segurança interna dos estados, ainda mais quando esses mesmos estados têm que garantir, de forma incondicional, o direito à alimentação como um direito fundamental, dada a ameaça latente do potencial catastrófico de disseminação de doenças através da Salmonela Typhi/Febre Tifóide, que se propaga durante o processo de preparação e manipulação dos alimentos, da Campylobacter jejuni, que se propala através da ingestão de leite não pasteurizado ou água.

Mas é o consumo de carne de frango fresca que constitui a principal fonte de infecção para os consumidores, da Listeria monocytogenes, que prolifera por distribuição ambiental em vegetação em decomposição, lamas, esgoto e águas fluviais, entre muitas outras doenças facilmente manipuláveis em laboratório por organizações criminosas contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares.

Perante os complexos desafios colocados às autoridades policiais e administrativas no âmbito da repressão a este tipo de fenómenos criminais, que envolvem intricadas teias que, a par de laboratórios com tecnologia de ponta onde se desenvolvem novas drogas cada vez mais difíceis de detectar, também trabalham na criação de microorganismos infecciosos com graves repercussões biológicas e químicas nos alimentos para consumo humano.

Mais recentemente, temos presenciado uma outra forma extrema de risco, resultante da intenção de prejudicar ou lucrar economicamente e, quando se dirige essa intenção para os géneros alimentícios, entramos no contexto da fraude alimentar (Slovic e Weber, 2002).

“O número crescente de casos de fraude em géneros alimentícios pode ser parcialmente atribuído ao aumento exponencial do comércio mundial e a emergência em criar novos mercados, assim como, o aumento constante dos preços dos alimentos em todo o mundo, fazendo com que se torne tentador defraudar alimentos em prol de maiores lucros económicos” (Holbrook, 2013).

Independentemente das várias opiniões em contrário, vivemos numa sociedade de risco que, por exemplo, ao nível da União Europeia (seguidamente UE), ainda actualmente não há consonância  nde ideias no que toca a aspectos fundamentais, como a troca efectiva de informações.

Caminha-se assim para a desregulaçãoda segurança pública e, quando se menciona esta, dever-se-á incluir as áreas da segurança alimentar como factor alvo de uma redobrada atenção, quer através da melhoria em muito do acervo legal existente capaz de acompanhar e face aos enormes desafios deste século, quer por entre tomadas de medidas pelos decisores políticos no que tange à reorganização das organizações policiais, no sentido de cabalmente intervirem no contexto de multiplicidade legal transnacional, o que ainda não acontece.

A título de exemplo, no quadro político português, a população em geral dá por garantido o acesso aos bens alimentares como fonte inesgotável de recursos, acredita que essa realidade das redes terroristas só existe nos países árabes e muçulmanos e que o bioterrorismo é um problema americano.

A libertação ou disseminação intencional de agentes biológicos ou a cada vez maior resistência aos medicamentos, intencional ou não; as dificuldades de contenção que os Estados camuflam sempre que as correntes frias varrem a Europa, arrastando doenças infecciosas, como o vírus da gripe que, perigosamente, se mutam entre seres humanos e excrementos ou secreções nasais de aves infetadas. Daí a extrema importância da cadeia alimentar, onde se engloba a saúde pública, ser alvo de um elevado grau de protecção numa conjugação de esforços dos sistemas jurídicos internacionais.

As cadeias alimentares e redes de saúde pública só unidos e cooperantes entre si poderão fazer face às ameaças que representam as organizações criminosas. É ainda direito humano uma alimentação adequada e que impossibilite a perda da soberania alimentar dos estados.

A empresa multinacional de agricultura e biotecnologia Monsanto é um dos perigosos modelos de causa de perda de soberania alimentar dos estados,dada a grande influência junto dos decisores americanos e europeus nas questões agrícolas e a polémica em torno do herbicida glifosato, vendido sob a marca Roundup, é disso um bom exemplo, chegando a responder por 70% a 100% da quota de mercado de variadas culturas.

A globalização dos mercados carregou consigo muitos pérfidos desafios às políticas de segurança pública dos Estados face a questões prementes como a cibercriminalidade, a criminalidade organizada, o branqueamento de capitais, o tráfico de armas, o tráfico de seres humanos, o tráfico de droga, a corrupção de substâncias alimentares, o bioterrorismo, entre outros graves problemas.

A par dos inúmeros reptos que se colocam aos estados, a corrupção de substâncias alimentares, em correlação com o bioterrorismo, será uma opção cada vez mais preocupante dado que, a tendência será para a redução do valor nutritivo e a junção de ingredientes nocivos ao consumo humano.

“Pela complexidade que a alteração da identidade e/ou a pureza do ingrediente original envolve, sendo por substituição, diluição, ou modificação por meios físicos ou químicos, é difícil identificar os compostos fraudulentos através da garantia e controlo de qualidade, mesmo sendo realizadas análises de perigos convencionais. Como consequência, apenas a organização criminosa ou o indíviduo sabem como o ingrediente alimentar foi manipulado” (Rodrigues, 2017:3).

O aumento da esperança média de vida dos seres humanos obriga a uma maior produção agrícola em solos já de si esgotados, o que preceitua à introdução de alimentos geneticamente modificados a fim de acompanhar o crescimento da população, barateando os custos da produção, provocando a produção em massa de carne e de peixe de forma artificial por meio de anabolizantes, benzoato de estradiol, zeranol, acetato de trembolona, o que promove o tráfico de esteroides associado ao tráfico de drogas e ainda a somatotrofina bovina, agonistas beta-adrenérgicos, antibióticos, probióticos, ionóforos, monensina, lasalocida e as hormonas anabolizantes, promotores de crescimento.

Todo um manancial de circunstâncias que levam a que as organizações criminosas tenham aqui vários ingredientes que facilitam o aparecimento de leite adulterado na China e no Brasil e ainda alguns milhões de alimentos contrafeitos, provenientes de mercados como o sínico, e que muitos problemas estão a criar no mercado europeu, onde redes criminosas causam insegurança alimentar no campo da biotecnologia e da engenharia genética e onde os riscos ambientais não podem ser dissociados.

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“Importa ainda referir o facto de os perigos para a saúde pública envolvidos neste tipo de fraude serem variadíssimos e muitas vezes desconhecidos até serem identificados, sendo o criminoso aquele que determina o risco do ingrediente adulterado colocado no produto e que possui a informação para calcular a extensão do perigo introduzido na cadeia alimentar” (Moore, Spink e Lipp, 2012).

A globalização dimensional carrega uma multiplicidade de pérfidos fenómenos aos investigadores policiais, como foi o caso, em 1986, da Bovine Spongiform Encephalopathy (BSE), que aconteceu devido a falhas no controlo dos locais de reciclagem de carne, ossos, sangue e vísceras devido à transnacionalização da produção e distribuição. 

A área alimentar, já no século XX, viu-se perseguida pelo fantasma da fome, que assombrou as sociedades à data, marcadas pelo medo das revoltas de uma população consumista cuja escassez de alimentos era vista como um impedimento à reprodução de políticas e Thomas Malthus preconizou que a produção de alimentos não conseguiria acompanhar o aumento da população, que crescia a taxa geométrica (Malthus, 1996 [1798]).

A indisponibilidade nutricional, face a uma população de alguns milhões de potenciais consumidores, é causadora de sobrecarga nos mercados e provocadora de insegurança na qualidade alimentar, o que tem aumentado as preocupações dos responsáveis políticos europeus quanto à segurança pública, dado os elevados riscos de fraude alimentar, que ocorrem com cada vez maior frequência como, por exemplo, os aditivos alimentares proibidos, que geram lucros ilegais de vários milhões de euros, equivalentes ao tráfico de estupefacientes.

Uma das questões cruciais é o baixo controlo exercido por parte das autoridades administrativas sobre as cadeias de abastecimento, cuja tendência é serem cada vez mais extensas e complexas devido aos adventos da globalização. Tal propicia as práticas fraudulentas e ao lucro ilegítimo, com repercuções graves em diferentes níveis, dado o aumento exponencial do comércio mundial na busca de novos mercados que potenciam a fraude de vários tipos de alimentos, realizando isto através da sua manipulação ilegal em laboratórios clandestinos, tal como acontece com os medicamentos, a dopagem no desporto com a utilização de substâncias proibidas, substâncias produzidas através de meios químicos, como as drogas sintéticas, que geram milhões de euros ilegais e que só uma ínfima parte é confiscada pelas autoridades policiais.

Embora haja maior consciência para os problemas relacionados com a segurança alimentar da parte dos responsáveis políticos europeus, continuamos sem uma estratégia quanto à protecção da saúde dos consumidores, sendo a área alimentar um dos pilares fundamentais do plano de segurança nacional do espaço europeu. As autoridades policiais deveriam ser alvo de uma reestruturação que as redirecionasse para os novos tipos de criminalidade grave e complexa, a par de medidas legislativas mais gravosas para as práticas delituosas nesta área.

Em 1979, a CE criou o RASFF, a fim de trabalhar com maior rapidez o fluxo de informações que permitem uma resposta rápida das autoridades policiais face a um qualquer problema de saúde pública na cadeia alimentar, como o óleo tóxico espanhol, os nitrofuranos, a melamina, azeites adulterados e vinhos falsificados.

É cada vez mais notório que a tendência é para haver mais ameaças à saúde publica e à segurança alimentar, como a contaminação do leite com melamina e o alarmante surto de gripe A, tudo isto dado o crescimento populacional de 1,5 bilião no século XX para 7 biliões no século XXI.

Saúde e segurança alimentar caminham lado a lado na epopeia de riscos e ameaças devido à ausência de fronteiras, onde diversos actores assimétricos se perfilam como mudanças na produção, na distribuição e no consumo de alimentos, a par das alterações no meio ambiente, novos agentes patogénicos e uma maior resistência antimicrobiana aos quais se juntam as acções ilegais das estruturas do crime.

Um novo tipo de crise surge no pós 11 de Setembro de 2001, que conduz os Estados para a concepção de uma onda securitária, a fim de fazer face a ameaças consideradas não tradicionais, com implicações graves no acesso aos alimentos e para as quais os responsáveis políticos deveriam tomar providências urgentes, pois os métodos de actuação polimorfos, difusos e anónimos característicos de ameaças transnacionais, como o narcotráfico são também os mesmos que colocam em causa a segurança alimentar através da utilização adulterada de drogas na produção de alimentos.

Esta situação conduz à utilização deliberada de agentes infeciosos num qualquer ponto da cadeia de distribuição, nomeadamente em países com escassos recursos, que impedem os respectivos governos de combater, com eficácia, o mercado negro das bactérias, dos vírus, das toxinas, dos pesticidas, alimentos não aprovados e corantes, contaminantes químicos e compostos radioactivos, já para não falar nas falsificações graves de agroquímicos com a circulação pela Europa de produtos não-homologados.

Segundo os números da ECPA (Associação Europeia de Protecção das Culturas), as vendas ilegais deste tipo de produtos representariam entre 400 a 1200 milhões de euros (5 a 15% das vendas totais) de vendas totais de pesticidas no mercado. A Europa de Leste é uma das zonas mais afectadas. Na Ucrânia, país fortemente agrícola, os produtos falsificados chegam a representar até 50% do mercado dos pesticidas, sem dúvida valores substanciais para os grupos criminosos que dominam o mercado e que se fornecem no mercado negro asiático, revendendo os artigos a um preço oito vezes superior ao valor de compra.

É notório que o espaço da UE é fértil no que toca a vendas ilícitas de produtos falsificados a organizações criminosas. Prova dos graves riscos para os consumidores europeus foi o caso dos ovos contaminados com Fipronil, o que obrigou a Alemanha, a Bélgica e a Holanda a retirá-los do mercado em 2017.

Nas mãos das organizações criminosas encontra-se a falsificação de inseticidas, herbicidas, fungicidas e de revestimentos antiaderentes, pelo que urge, da parte dos responsáveis políticos, tomar medidas que objetivem obstaculizar os mercados não licenciados.

Em Portugal, é notório o laxismo como este assunto, entre outros, é tratado, pois basta observar a tamanha falta de segurança observada nos entrepostos comerciais, basilares para a economia nacional, onde fabricantes, importadores e distribuidores se misturam sem qualquer implementação de medidas que visem aplacar uma qualquer acção semelhante aos ovos contaminados com Fipronil na Alemanha. Tal revela uma clara falta de políticas de segurança interna proactiva para esta área, como o desenvolvimento de operações de prevenção criminal.

Os riscos alimentares caminham lado a lado com microrganismos patogénicos, toxinas microbianas, ou agentes químicos. O mesmo acontece com agentes biológicos, químicos e físicos presentes nos géneros alimentícios, com consequências inimagináveis para a saúde pública ainda, principalmente em Portugal, onde não há uma cultura de investigação criminal para a área alimentar da parte das autoridades policiais e a prova-lo está o facto de não se realizarem operações especiais de prevenção por forma a melhor controlar fontes de perigo, como as associações criminosas, como resulta da conjugação da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, subsequentes alterações, e a Lei 96/2017 de 23 de Agosto, por exemplo, para o tráfico de armas.

“Em 2015, vários membros do Food Safety Authorities Network (INFOSAN) manifestaram preocupação com esta questão, nomeadamente ao nível das falhas existentes para monitorizar e analisar o arroz artificial. Além disso, existem dificuldades em caracterizar os potenciais riscos desta, não confirmada, fraude alimentar, mais particularmente porque as resinas supostamente utilizadas continuam a ser desconhecidas” (FAO/WHO, 2016).

É evidente a falta de sensibilidade do legislador para a área alimentar quando, nos crimes de prevenção prioritária, não é feita qualquer referência aos inúmeros factores de grave risco para a cadeia alimentar e menos ainda nos crimes de investigação primacial, apesar de, na EU, o Regulamento 178/2002 do Parlamento Europeu de 28 de Janeiro se focar essencialmente na questão da segurança da cadeia alimentar como prioridade máxima para a saúde humana. Ainda o artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à prestação de informação aos consumidores sobre os géneros alimentícios, define a obrigatoriedade de fornecer informações que não devem induzir o consumidor em erro quanto a:

  • definir as características do género alimentício e sua natureza, identidade, propriedades, composição, quantidade, durabilidade, país de origem ou local de proveniência, método de fabrico ou de produção;

  • atribuir ao género alimentício efeitos ou propriedades que não possua;

  • sugerir que o género alimentício possui características especiais quando todos os géneros alimentícios similares possuem essas mesmas características evidenciando, especificamente, a existência ou inexistência de determinados ingredientes e/ou nutrientes.

O Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, não se coaduna com os actuais objectos de tutela muito complexos, de perfil assimétrico, e labirínticos. Basta olhar para o manancial de possíveis lesões nos interesses jurídicos dos consumidores, que só uma adequada resposta penal diminuirá o sentimento de insegurança alimentar nutrido por casos como o dos nitrofuranos, em Fevereiro de 2003, em Portugal. O perigo reside no facto de haver fábricas na Europa de Leste e na Ásia e redes criminosas que os movimentam ilicitamente. “Os nitrofuranos consistem num grupo de agentes sintéticos quimicoterapêuticos com um largo espetro antimicrobiológico, ou seja, são antibióticos que agem ativamente contra bactérias, inibindo alguns sistemas enzimáticos microbiológicos.

Como os nitrofuranos possuem muito pouca solubilidade em água, foram usados oralmente ou como medicamento tópico ilegalmente para prevenir doenças e para promover o crescimento em animais para consumo humano” (Vass, Hruska, e Fránek, 2008).

Basta um olhar mais atento sobre o preâmbulo do Decreto-Lei 28/84 de 20 de Janeiro, alterado pela Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, para discernirmos que os perigos que caracterizavam a realidade de outrora são hoje um Adamastor caracterizado por organizações criminosas complexas no modus operandi no que tange à contaminação intencional e adulteração do produto a que o Regulamento (CE) 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, criador da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, mesmo conjugado com outros diplomas comunitários, e nacionais, não consegue fazer frente ao perigosíssimo crescimento do comércio ilegal de medicamentos como os antibióticos que segundo Sophia May “Quando uma pessoa compra uma carteira falsa, sabe o que comprou.

Com os medicamentos é diferente, principalmente com a venda pela internet. Um dos grandes perigos é o impacto não apenas na saúde individual, mas também na saúde pública. Um tipo comum de falsificação é o antibiótico com dose menor do ingrediente ativo, o que gera tolerância aos vírus, algo que pode ativar o surgimento de variedades mais virulentas” (Sophia May, 2016).

Parte II

Nota: Artigo publicado originalmente na Tecnoalimentar 21

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