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Revista TecnoAlimentar

Entrevista com Tiago Brandão, gestor do Super Bock Group

«Com a globalização, os factores de diferenciação dos produtos têm que ser mais instantâneos e curtos»

ENTREVISTA COM TIAGO BRANDÃO, GESTOR DO SUPER BOCK GROUP

Há mais de 20 anos no Super Bock Group, Tiago Brandão liderou diversas áreas distintas ao longo da sua carreira. Atualmente focado na investigação, desenvolvimento e inovação, o gestor ocupou, em 2015, a presidência da Convenção das Empresas Cervejeiras, demonstrando o seu profundo conhecimento do setor cervejeiro.

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Entrevista Manuel Rui Alves e Carla Barbosa Fotos Sofia Cardoso

TECNOALIMENTAR: O seu percurso académico e profissional  até à data é mercado pela diversidade. Poderia falar-nos sobre a sua cadência desde o início?

TIAGO BRANDÃO: O meu percurso no Super Bock Group é marcado pela diversi- dade das funções desempenhadas. Sou for- mado em bioquímica pela  Universidade do Porto tendo, posteriormente, ingressado num programa internacional, entre Inglaterra e Holanda, onde realizei uma pós-graduação em Biotecnologia. Após uma experiência inicial na indústria farmacêutica, na Novartis, praticamente dediquei toda a minha carreira ao SPG, onde colaboro há cerca de 20 anos.

No SPG comecei por ingressar na área produtiva, que consiste na biotecnologia mais rudimentar da indústria alimentar. Em seguida ingressei na área de qualidade e em 2006 foi criado um núcleo de investigação e desenvolvimento algo que, na época, na indústria cervejeira, era muito relativo, pois tratava-se de uma indústria pouco entusias- mada perante potenciais inovações. Criamos, ainda, uma área ao nível da direcção de inovação. Este processo estruturado de conceção e desenvolvimento migrou mui- to para valências de inovação propriamen- te ditas, como o ciclo de produtos mais curto, necessidade de diferenciação, introdução de novas categorias e enquadramentos regulatórios restritivos, como no caso dos su- mos e refrigerantes. Além disso, a globalização trouxe um conjunto de inputs e insights e, ao mesmo tempo, desafios, o que fez abalar as estruturas das empresas ditas incumbentes. Passamos a concorrer com qualquer empresa em qualquer parte do mundo e, atualmente, os consumidores são despertos por toda esta dinâmica do instantâneo. Seguiu-se, em 2013, o desempenho de funções enquanto diretor de recursos humanos, por uma lógica de rotação ao nível dos quadros de topo para formação ao nível de chefias.

Em 2017 abracei o desafio atual. Para além de responsabilidade da direção de in- vestigação, desenvolvimento e inovação, na estrutura central, abracei o The Browers Company, um spin-off no qual desempenho funções enquanto general manager. O objetivo passa por criar um modelo de negócio complementar, que parece  quase  destruir o nosso negócio numa ótica gerida de dentro, com o desenvolvimento de uma empresa direcionada para as novas tendências do setor cervejeiro nacional. Contudo, na ótica da resposta à contingência da pandemia da Covid-19, com a necessidade de refocalizar os modelos de negócio, regressamos a uma dinâmica com suporte na investigação, de- senvolvimento e inovação, com o intuito de responder aos desafios de curtíssimo prazo.

Tenho, também, o Master Brewing Science e tal permitiu-me desenvolver uma relação com outros stakeholders internacionais, ao pon- to de, em 2015, assumir funções de presiden- te da Convenção das Cervejeiras Europeias.

TA: É inevitável falar da atual situação pandémica. Acredita que a segunda vaga irá ter mais consequências para o setor?

TB: O setor agroalimentar está muito expos- to, sobretudo devido à tipologia do consumo em Portugal. O nosso país, felizmente, bene- ficia de condições meteorológicas que per- mitem que a maioria do consumo de bebi- das seja realizado fora de casa. Ao contrário da esmagadora maioria dos países europeus, com a exceção de Espanha e Grécia, cerca de dois terços de consumo de bebidas acontece em espaços exteriores. Dito isto, uma pande- mia como esta afeta, para não dizer exclusi- vamente, mas na sua grande maioria, o con- sumo fora de casa. Perante tal, temos que nos adaptar de imediato à forma como desenvol- vemos os nossos produtos e organizamos os canais de distribuição, até então com outras especificidades e objetivos distintos, mas que devem ser coerentes com a nova realidade, que migra o consumo para dentro de casa.

EVOLUÇÃO DO SUPER BOCK GROUP AO LONGO DAS DÉCADAS

TA: Ao contrário do que aconteceu no seu começo, onde existiam três cen- trais de produção, atualmente a ativi- dade do SPG está centralizada na fá- brica de Leça do Balio. Contudo, o novo projeto parece contribuir para uma nova descentralização, mas já numa ótica de empresas completamente dis- tintas. Como nos explica o processo ao longo dos anos e a tendência atual?

TB: O SPG, à semelhança de outras empre- sas do setor, começou por se traduzir num conjunto desagregado de pequenas produções em escalas muito menores, com uma dispersão geográfica das unidades que, com a nacionalização, foram divididas em duas empresas, a Sociedade Central de Cervejas e a Companhia União Fabril Portuense, esta última a nossa primeira representação. Na altura ficamos com Santarém e Porto. Entretanto, o desenvolvimento dos processos produtivos fez com que surgissem conceitos de eficiência e de gestão de produção que foram muito sen- síveis a um aspeto fundamental, a logística. A evolução das infra-estruturas de apoio às operações de logística permitiu que a cerveja não precisasse de ser produzida em Loulé para ser distribuída no Alentejo, que pudesse passar a ser produzida em Santarém e, agora, ser pro- duzida em Leça do Balio. Hoje em dia, de Loulé a Santarém demoramos cerca de cinco horas a entregar uma remessa, enquanto há 20 anos demoraríamos mais de meio dia. Esta nova dinâmica fez com que encerrássemos o centro produtivo de Loulé, em 2011. Na altura realizamos investimentos produtivos em Santarém, com um intuito de maximizar a sua capacidade instalada, até de uma forma geográfica, para conseguir realizar a capilaridade praticamente no Sul.

Na época dá-se um novo momento de consolidação, a evolução dos processos pro- dutivos no âmbito da garantia da qualidade. No caso da cerveja, conseguimos estabilizar, produzir e garantir a qualidade do ponto de vista sensorial em quase mais 100% do tempo, tendo passado de seis meses para doze meses de validade. Estas alterações fazem com que se adeqúe a produção, se realizem investimentos em capacidades logísticas e armazenagem, se criem redes de distribuição muito mais pensadas em just in time e se aumente a sua capacidade buffer em detrimento de investimento produtivo.

Perante a conjuntura favorável, entre 2011 e 2014, durante a crise, os accionis- tas decidiram que fazia sentido investir no pólo portuense e dota-lo de capacidade lo- gística extremamente inovadora, com um armazém completamente automatizado, com mais de 30 mil paletes por dia, onde o objetivo passa pela massificação. A logística atual permite-nos entregar o produto de forma muito mais eficiente, seja por via terrestre, seja por via marítima, devido à proximidade com o Porto de Leixões. Toda esta dinâmica leva a que a cadeias de valor se adeqúem a fatores racionais que não são fáceis de comunicar ao consumidor.

Com a nova capacidade logística, o território de concorrência ficou muito mais sensível em termos de preço e margens comer- ciais. As economias de escala aí são, de facto, explicativas. Hoje, o número de clientes com que negociamos está mais reduzido, como no caso do off-trade, onde temos poucas insígnias com quem negociamos grandes volumes. Por outro lado, o canal Horeca, mantendo a sua dispersão e, no caso dos centros urbanos, aumentando em número, tem, na sua estrutura de distribuição capilar, menos distribuidores, que também se consolidaram geograficamente. A operação de logística otimizou-se ao mais alto nível, o que levou a que a indústria se tornasse cada vez mais eficiente na otimização da produção.

 

TA: Tal como aconteceu com o gru- po, o destino das pequenas empresas passa pela agregação?

TB: Curiosamente, este movimento que re- feri é contra balançado por um outro, que consiste na massificação criar sempre opor- tunidades micro de produções locais. O pão que se faz igual para todos cria sempre um pequeno apetite latente pelo pão que é dis- tinto. Isso leva a que se crie algo como o nosso projeto anteriormente referido, pe- quenas unidades de produção local que acabem por ter uma proposta de valor mui- to mais assente no artesanal, no local, mas nunca com uma perspetiva de escala.

A lógica do The Browers Company visa, por um  lado,  compreender  culturalmente o consumidor e, por outro lado, ter uma lógica relacional muito personalizada, porque estas pequenas unidades, na sua gran- de maioria, são projetos de paixão individual das pessoas. Existe um core, existe uma neces- sidade de garantir as suas atividades e existe a necessidade, dentro do seu lugar estratégico, de adequar as suas práticas sem se ostra- cizar. Portanto, o que antecipo que aconteça nos próximos anos é a consolidação de algu- mas pequenas unidades, porque têm interesse, boas ideias e bons planos, e o desaparecimento da esmagadora maioria das restantes, devido ao processo de selecção artificial in- teligível no âmbito dos negócios. Daqui por cinquenta anos, algumas pequenas unidades poderão realizar um ciclo como o nosso, mas o processo é demorado.

 

A CONCORRÊNCIA E A FIDELIZAÇÃO DO CONSUMIDOR PORTUGUÊS

 

TA: Nos últimos anos, tem aumenta- do a concorrência exterior, nomeada- mente de Espanha. Qual é o posiciona- mento do grupo face a esta tendência crescente?

TB: O SPG acredita na perceção natural de que todos esses novos players dizem exatamen- te o mesmo sobre nós, pois também vendemos muito produto no exterior. Com a globaliza- ção, os factores de diferenciação dos produtos têm que ser mais instantâneos e mais curtos. A concorrência é mais do que bem-vinda, na justa medida em que, na ótica do consumidor, provavelmente cria entusiasmo.

Vejamos, nos últimos vinte anos assisti- mos a uma redução do consumo de cerve- ja per capita mais ou menos gradual e contí- nua. Nos últimos quatro anos, temos vindo a assistir a essa inversão, principalmente porque se começou a falar um pouco mais de alguma diversidade numa categoria que, de certa maneira, estava relativamente estabilizada no que toca a aspetos sensoriais. No final do dia, quem mais beneficia são os grandes players, porque são quem fica com 98% desse ganho. Portanto, a concorrência é importante, ao contrário do que se possa pensar. Porém, também sabemos que, se temos processos produtivos automatizados e cadeias de valor eficientes, conseguimos uma proposta de valor mais interessante e apelativa e, portanto, continuamos a ter a posição no mercado mais salvaguardada, não nos amedrontado os concorrentes.

TA: Isso acresce a responsabilidade e trabalho para manter sempre os ní-  veis de qualidade e estar próximo do que o consumidor necessita e deseja.

TB: São os dois únicos ativos que sustenta- velmente garantem os negócios: a melho- ria contínua, que consiste na incorporação de boas práticas e otimização, onde não po- demos nunca descansar; e a qualidade na sua definição teórica, que consiste na coe- rência entre aquilo que prometemos e en- tregamos. Afinal, o produto é bom porque é diferente ou é bom porque corresponde exa- tamente aquilo que eu comprei? A resposta deverá ser uma conjugação de ambas as sen- sações. Temos que ser competentes na qua- lidade daquilo que prometemos e não pode- mos apresentar o mínimo desvio de processo produtivo, pois afetaríamos os consumidores fidelizados. Esse é um ativo completamen- te inabalável e um dos maiores problemas para as  pequenas  produções, onde ocorre uma variação enorme. Além disso, deve- mos ter presente a diversidade. Hoje em dia temos que ser capazes de responder, anteci- par e igualar propostas de diversificação que surjam no mercado. Não fazemos revisões estratégicas e optamos por mecanismos de scouting permanente nas organizações.

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TA: A sensação é que o consumidor português prova pouco, consome mais por saciedade e fideliza-se, muitas vezes, a uma marca constante, a que se mantêm muito fiéis. Concorda? Porque é que as cervejas belgas, por exemplo, não conseguem grande espaço no mercado português?

TB: A cerveja é introduzida no setor nacional perante a lógica do “refrescar”, enquanto bebida de verão. Inicialmente, o conceito de cerveja foi muito concentrado naquilo que, em termos tecnológicos, permitia às cervejeiras nacionais produzir com maior regularidade, as cervejas Lager, que têm um processo produtivo com uma maior estabilização e indiferenciação, originando um produto mais neutro. Esse foi o perfil que foi de- senvolvido no consumidor português, um produto para refrescar, saciar a sede e com uma lógica jovial e de relacionamento social. A cerveja portuguesa nasceu fora de casa.

Na Bélgica, na Alemanha, na Escandinávia, o que acontece é que temos um processo his- tórico muito mais longo. Estas cervejas bel- gas são perfis Ale, que nasceram há cerca de 400 ou 500 anos, onde ainda não existia se- quer domínio sobre o que era uma fermentação. A cultura cervejeira nasceu, assim, de cervejas locais e produzidas em pequenas va- riedades. Apesar do crescimento, até há cerca de 30 anos ou mais, nenhuma destas assumiu verdadeiramente nenhuma magnitude internacional. Portanto, ao contrário do nos- so grupo, o perfil desses produtos não foi um de drink ability, foi um perfil de cultura, algo que não temos fora do espectro social.

Em Portugal, este hábito demorará cerca de 30 anos a criar, na justa medida em que a diferenciação do produto só come- çou a fazer sentido para 1% da população quando começaram a experimentar outras cervejas. Começou a existir uma alteração porque as grandes superfícies começaram a expor outros produtos e as pessoas começa- ram a viajar, a experimentar outros produtos e criaram algum, embora humilde, apetite.

Deve-se, ainda, falar da questão do ne- gócio. Uma cerveja belga, produzida em Gent, chega a Portugal a que preço? O con- sumidor português vai comprar uma garrafa de cerveja a 3,50 euros quando tem ao lado uma caixa de seis pelo mesmo preço? Existe uma dimensão do produto e uma dimensão comercial e o consumidor português, com o nosso nível socioeconómico, é extremamen- te autoritário na hora da tomada de decisão. Defendo que, do ponto de vista de diferenciação, temos uma oportunidade ótima de testar conceitos que possam ser relevantes escalar. O SPG criou recentemente uma cerveja sem glúten. Qual a relevância do produ- to para o consumidor final? Os celíacos que bebam cerveja são poucos e, dentro do espectro, ainda existem mais fracções divisórias. Ainda assim, o grupo acredita que, do ponto de vista do conceito, da responsabilidade do portefólio da empresa e da qualidade, estão reunidas condições para se ter desenvol- vido uma formulação em que acreditamos. Começou a existir uma lógica que ganhou interesse pelo consumidor, que se converteu numa tendência e tornou-se interessante dar resposta. Se fizéssemos o desenvolvimento di- rigido apenas a quem a utilizaria, seria desinteressante do ponto de vista económico.

TA: Além da cerveja, o SPG também tem uma variação considerável de produtos.

TB: Internamente, o nosso portefólio conti- nua a ser muito diverso, com alguns produ- tos relativamente cirúrgicos na sua lógica de colocação. Cerca de 70% do nosso volume é cerveja. Em seguida temos as águas, dividas em carbónicas e minerais, traduzidas atra- vés da marca Pedras e Vitalis. Depois temos uma referência cirúrgica de vinho à pressão, a marca Vini, que está presente em muitos hotéis, restaurantes e cafés,  nomeadamente em zonas do Interior. Produzimos, ainda, vinho engarrafado, como as marcas Planura e Quinta do Vinho. Existem também os soft drinks, os conhecidos refrigerantes, que se di- videm na Frutis, Frisumo, as colas e outros. Mantemos os mixings e, sobretudo, as estraté- gias, comercializando apenas em lata. Esta- mos presentes em tudo. Porém, é importan- te não esquecer que grande parte do esforço de investigação, desenvolvimento e inovação nestas categorias é na embalagem. O número de referências aumentou significativamente mais pela introdução de formatos, do que pela componente de produção de líquidos.

TA: Além das categorias referidas, a sidra tem vindo a ganhar um importante espaço no consumo  nacional.

TB: Esta é uma categoria que acabamos por inovar em termos de criação de necessidade, que não existia em Portugal até à che- gada do nosso produto, a Somersby. Aliás, as sidras mais vínicas e algo muito espanhol. Estas são sidras de fruta, como especial enfoque na maçã, e que resultam de um ensaio realizado entre 2009 e 2010. Em colabora- ção com a nossa accionista Carlsberg, trouxemos um processo para Portugal e testamo-lo numa região específica do país, onde vimos que existia alguma atração e potencial do ponto de vista do consumidor e proposta. Acabamos por migrar o processo produtivo com o objetivo de o tornar interessante do ponto de vista económico, ajustámo-lo ao perfil de embalagem e propostas em termos de canais e atualmente temos dez milhões de sidras no mercado. Esta é uma solução refrescante, adulta e sofisticada, com um apelo sensorial a quem privilegia o doce em detrimento do amargo.

«A ESTRATÉGIA DE INVESTIGAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E INOVAÇÃO RELACIONA-SE INTIMAMENTE COM A ENGENHARIA E A CIÊNCIA»

 

TA: O crescimento da unidade fabril ao longo do tempo é considerável. A capacidade analítica revela-se funda-mental como no passado?

TB: A fábrica nasceu com um intuito produtivo de 20 milhões de litros de cerveja. Atualmente, isso é o que se vende num mês. Como tal, o que aconteceu foi um crescimento or- gânico considerável. A empresa nunca abdi- cou da componente de excelência ao nível do produto. Para isso não é necessário um produto espetacular e diferente, mas sim um produto espetacular e extremamente uniforme. Na altura da criação da unidade fabril, já se pensava no conhecimento mais avan- çado de como fazer e não na máquina que o faria melhor. O controlo analítico dos pro- cessos foi muito melhorado nos anos 50 e 60. Acabamos por incorporar equipamentos que nos permitiram realizar alterações de parâmetros, o que é fundamental.

Atualmente, termos intervalos de con- fiança dos nossos parâmetros e especificações de cerca de 0,01% acontece devido a um trabalho contínuo de melhoria ao  nível do processo. Daí que eu possa dizer com confiança que o ativo que mais nos sustenta é a qualidade. Soubemos  implementar, do ponto de vista do controlo de processo, as melhores práticas, o que influencia as decisões de investimento. A título de exemplo, se não soubermos aferir como a levedura se está a comportar em temos do seu estado microbiológico e fisiológico, acabamos en- tregues à sorte pois, no caso de ocorrência de uma variação, muito provavelmente, pode- mos estragar um mês de produção. É essencial conseguirmos suportar analiticamente a nossa tomada de decisões.

Nos anos 80 e 90 a fermentação evoluiu de um sistema transitório para um sistema uni tanque, onde todas as etapas ocorriam num sistema só de processo fermentativo e maturação. Esse foi o momento em que beneficiamos de nos encontrarmos um pouco mais à frente em termos de boas práticas de produção. O grupo sabia que a cerveja ti- nha determinados tipos de parâmetros e variedades que eram criticas e, quando fizemos a prescrição de qual a melhor solução, aca- bamos por desenhar os nossos tanques, do ponto de vista geométrico e outros, que nos permitiu ter um produto muito mais bem conseguido em termos de características sen- soriais. Acabamos por ter maior reprodutividade nesse processo. Desenhamos, também, os nossos cones com base num princípio inspirado nas cervejeiras da escola belga, que advogava que, neste tipo de fermentações, a levedura beneficiava de ter uma determina- da inclinação dos cones para que não se criasse muito stress sobre a camada das leveduras. Acredito que a estratégia de investigação, desenvolvimento e inovação se rela- ciona intimamente com a engenharia e a ciência, não devendo ser só saber o que o consumidor quer, mas também ao nível dos seus processos, sendo que as empresas não se devem esquecer de caracteriza-los.

Existem três vertentes essenciais nesta componente cientifica. A primeira está relacionada com as embalagens, e ai estamos a falar de materiais, funcionalidade e resis- tência, a visão de economia circular (reincor- poração) e muito mais. A segunda vertente relaciona-se com as fermentações. Estamos atrasados relativamente à parte tecnológica no que diz respeito à bioquímica e biologia dos processos, quer na sua explicação, do ponto de vista na modificação genética dos alimentos, quer na revisitação. A nossa res- ponsabilidade enquanto produtor é cada vez mais exigente. Quanto mais soubermos so- bre o nosso produto, melhor. A vertente analítica e do conhecimento deveria seguir para um nível mais molecular e ainda estamos presos a um nível físico-químico. A componente sensorial é a última vertente, essencial na indústria agroalimentar.

 

TA: Para existir essa caracterização constante, são necessários  profissio- nais que tenham uma boa estrutura de conhecimento científico base, algo que deve ser trabalhado nas universidades.

TB: Exatamente. Os currículos, nomea- damente nas disciplinas técnico-científicas, nunca poderão abdicar dessas técni- cas. Mesmo que exista uma tendência para a automação, nunca se pode abdicar do conhecimento robusto dos princípios científicos inerentes. A empresa tem que ter sempre alguém dotado dessas competências, não só em casa de avaria, mas porque temos que entender que, no futuro, isso vai suportar determinadas estruturas essenciais.

Não podemos ser todos marketeers, enge- nheiros informáticos e gestores porque, no fim vai existir sempre um processo interativo entre quem tem o conhecimento científi- co e quem tem o conhecimento de gestão. A título de exemplo, no momento que estamos a viver, é necessário calcular determinados cenários relativamente urgentes de adequação de produtos e processos. Se não tivermos quem técnica e cientificamente consiga rapi- damente explicar, e de forma clara, aos gesto- res e aos marketeers o que é ou não possível fa- zer, corremos o risco de cometer graves erros.

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TA: A fábrica tem capacidade para controlar diferentes tipos de levedu- ras e realizar a sua manutenção?

TB: Os nossos bancos de leveduras estão muito bem acautelados. Não utilizamos apenas uma levedura. Esses bancos são realiza- dos pela preservação das melhores práticas de microbiologia no nosso laboratório adequado e moderno. Temos cópias de seguran- ça em outras unidades, nomeadamente na Carlsberg, na Dinamarca, e em unidades do sistema científico nacional (universidades).

As leveduras mais robustas aguentam até 10 a 20 ciclos, enquanto as menos robus- tas entre dois e três. Em média, andaremos em volta dos seis ou sete. Estamos a falar de fermentações quem têm uma característica de fermentação a temperaturas mais baixas. Quanto mais altas as temperaturas, maior o nível alcoólico dessas fermentações, como a fermentação da cerveja Ale. Nas Lager, temos condições menos agressivas do ponto de vista quer osmótico, quer microbiológico, o que nos permite reutilizar. Temos, também, técnicas de recolha bastante suaves, para evi- tar grande choque do ponto de vista mecâ- nico, e tratamos bem a levedura, o que per- mite a sua reutilização. Felizmente, a técnica e a engenharia evoluíram para hoje termos condições de recriarmos isto em circuito fe- chado, o que é muito bom do ponto de vis- ta fisiológico e microbiológico. Isso está auto- matizado a um nível essencial.

TA: As novas cervejas que lançaram, como as 1927 e as Corujas, em que diferem em termos de produção?

TB: Para a sua produção dotamos a nossa fábrica de uma pequena instalação, pois estes produtos não são criados em volumes com- paráveis à cerveja Super Bock, são produtos mais gourmet. Ainda assim, a 1927 é a cer- veja dita artesanal mais vendida em Portugal. As cervejas são diferentes em termos de formulação e levedura. Quando o cervejeiro começa a pensar a cerveja, começa por definir o estilo que quer produzir. Desde logo os estilos prescrevem as matérias-primas e o processo de fermentação. Após a receita das matérias-primas, temos que selecionar uma levedura que seja compatível com um perfil que se pretende, quer para a fermenta- ção, em termos físico-químicos, quer para a vertente sensorial. Depois, temos que pensar em que recipiente será feito o produto, o que exige alguma flexibilidade em escala indus- trial. Para mim, a arte cervejeira está con- centrada na selecção correta das entidades experimentais, como as leveduras, e na seleção adequada das matérias-primas.

TA: Em relação a funcionários, quantos são os ativos atuais da unidade? Como funcionam as unidades pro- dutivas em termos de produtos?

TB: À volta de 1 200 colaboradores dispersos por unidades produtivas. Tal conjuga com os indiretamente contratados, na ótica de subcontratações e negócios que surjam em volta do nosso, que é um número infini- tamente superior.

Temos a unidade produtiva de Leça do Balio, a UNICER, dedicada à produção de cerveja, sidra e vinho. A unidade produtiva de Pedras Salgadas é dedicada exclusivamen- te à produção de água das pedras. Já a unida- de produtiva de Ladeira de Envendos era dedicada a Caramulo até 2019 e a de Castelo de Vide é dedicada à água Vitalis. Depois temos unidades logísticas, quer aqui no Porto, quer em Lisboa, no MARL. Temos, ainda, uma unidade produtiva de transformação de cereais, a Malte Ibérica, em Poceirão.

A nossa equipa de controlo de qualidade e de investigação, desenvolvimento e inovação é constituída por engenheiros alimentares, bioquímicos e de biotecnologia.

TA: As matérias-primas que usam são adquiridas a empresas nacionais ou internacionais?

TB: Na cerveja temos três matérias-primei- ras principais. A água, que é obviamente lo- cal e que, nos últimos 40 anos sofreu, em termos de tecnologia, avanços extraordinários que nos permitem regularidade diária de produto. Depois temos os cereais, que têm uma proporção 50-50 entre o que é aprovi- sionado localmente, que varia conforme de- corre o ano agrícola, e que provém de Espanha e França. Na esmagadora maioria, são matérias-primeiras ibéricas.

Em último lugar temos o lupo que, pela questão específica da sua cultura, está mui- to centralizado, no caso da Europa, nas re- giões da Alemanha e República Checa. Apesar de mantermos a única cultura ati- va e digna de registo da cultura no planal- to transmontano, em Bragança, por uma questão de fornecimento estável e contínuo, aprovisionamos a esmagadora maioria de fornecedores internacionais. Dito isto, é uma percentagem muito pequena daquilo que é a cerveja. A levedura não é considera- da enquanto matéria-prima mas sim agente tecnológico da produção de cervejas.

Há uma lógica de consolidação nos mer- cados globais, ao nível também dos fornece- dores, dos inputs para as produções. O agroalimentar é, eventualmente, menos sensível a essa consolidação, porque tem uma lógica de aprovisionamento de produtos mais próximos. Contudo, ao nível de embalagem isso já não é assim. Felizmente, em Portugal temos fornecedores a esse nível bastante robustos e sustentados. A BA Vidro fornece-nos as garrafas. Os nossos rótulos chegam quase todos do Alentejo. Conseguimos manter uma lógica de inputs para a produção dos nossos produtos muito nacional.

 

A APOSTA NA INVESTIGAÇÃO, DESENVOLVIMENTO E INOVAÇÃO

 

TA: Em termos de volume de negócios, que valores apresenta o Super Bock Group?

TB: Temos um volume de vendas superior a 500 milhões de euros anuais. Deste número, retiramos o EBITA, que é superior a 100 milhões de euros. O resultado líquido prende-se em torno dos 50 a 60 milhões de euros. Isto quer dizer que, em termos de volume, nós fornecemos 50 litros de bebidas por cidadão português anualmente.

TA: Que valores são alocados à parte da investigação, desenvolvimento e inovação?

TB: Foi recentemente publicado o IPCTN (Inquérito ao Potencial Científico e Tecno- lógico Nacional). Em 2019, o SPG ocupa- va o 16º lugar no ranking, sendo a primeira empresa agroalimentar. Estamos a falar de montantes à volta de 10% do nosso volu- me de negócio. Temos toda uma componente de infraestruturas que nos permite ser praticamente autónomos no âmbito da conceção de inovação e desenvolvimento. Na investigação não, nem queremos, pois acreditamos que devem existir colaborações externas e também não se justifica um nível de utilização frequente- mente. Estimulamos relações com entidades do sistema científico e tecnológico, com for- necedores e acabamos por triangular essa re- lação. A nossa estratégia é pensar que existe, dentro dos nossos ecossistemas, uma envolvente interna, com tendência a liderar as ini- ciativas do ponto de vista da produção. Existe uma envolvente externa, onde selecionamos entidades que sejam, do ponto de vista do know-how, interessantes e que nos colmatem. Além da área alimentar, conjugamos a área da nutrição e das embalagens. Tendemos a que a iniciativa de investigação com desen- volvimento tenha um business case.

TA: A questão da responsabilidade social também é muito relevante para o grupo, correto?

TB: Temos essa responsabilidade do ponto de vista social e do ponto de vista cultural, pois representamos bebidas, quer queiramos, quer não, que são muito reconhecidas no âmbito regional. Além disso, temos um conjunto de eventos que apoiamos que integram esta dimensão cultural, como concertos, iniciativas culturais e apoio a clubes de futebol. Apoiamos, sobretudo, estas atividades em duas vertentes. A vertente social, seja da lógica do município de Matosinhos ou do distrito do Porto, mas também nas regiões onde nos encontramos presentes no ponto de vista produtivo.

TA: O que reserva o futuro para o setor cervejeiro?

TB: Os marketeers vão ser muito sensíveis a que nós consigamos evidenciar que a ciência também explica o padrão de consumo. Atualmente, a crença é que o padrão de consumo explica-se pelo enquadramento socio- cultural, ambiental, entre outros. Mas eu sei que, se beber uma cerveja que gosto, existe uma ligação química, fisiológica e organo- lética. Este cocktail de explicação ainda não existe na indústria agroalimentar. Muitas vezes questionam-me: o que é que difere o produto A e B se, analiticamente, este é exatamente igual? Não é igual. Parece igual, mas não o é. Basta servir a uma temperatura diferente para que o produto tenha uma receção sensorial distinta nos receptores. E mais, daqui por dois meses, vai ser distinta da atual. É esta ligação da explicação do mecanismo da perceção que ainda não está explicada cientificamente de forma avançada.

Nota de Redação

Artigo publicado na edição n.º 25 da Revista TecnoAlimentar.

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